As perversidades cotidianas, a solidão e a loucura no primeiro romance de Maria Fernanda Elias Maglio
Silvio Carneiro
A primeira vez que ouvi falar em Maria Fernanda Elias Maglio foi através da também escritora Lulih Rojanski, que me falou de seu encantamento com a literatura feita pela vencedora do Prêmio Jabuti 2018 com o livro de contos Enfim, imperatriz (Patuá; 2017).
Meu primeiro contato com Maria Fernanda foi recente. No dia 29 de outubro, pude assisti-la ao vivo como convidada da mesa temática Literatura e Sociedade, na I Folia Literária Internacional do Amapá, onde falou sobre o tema da mesa, e também sobre seu primeiro romance, Você me espera para morrer?, lançado pela Patuá em setembro.
Em seu romance de estreia, Maria Fernanda conta a história das gêmeas Aline e Ilana - ou Line e Lana, como as personagens se chamam na intimidade do lar.
A história se passa num pequeno município do interior de São Paulo, como Cajuru, cidade natal de Maria Fernanda, localizada a cerca de 300km de São Paulo - uma cidade pequena, com pouco mais de 20 mil habitantes, daquelas onde "tudo deve ser feito em silêncio, até mesmo apalpar os peitos de uma menina sem peito nenhum"...
Mas o livro não é autobiográfico, garantiu a escritora em sua palestra, "embora todo escritor coloque muito de si em cada obra que escreve", disse.
Assim, logo na capa, criada pelo artista gráfico Anderson Bernardes em cor ocre como terra, desenham-se as figuras de duas silhuetas gêmeas - que, de certa forma, assemelham-se à silhueta da própria Maria Fernanda, como um indicativo de que suas protagonistas, em alguma medida, são seu próprio espelho de memórias. E depois que você lê toda a história, você acaba descobrindo, ao olhar novamente a capa, tantas coisas ditas nas entrelinhas. À esquerda está Ilana, constantemente voltada para o passado. À direita, Aline parece encarar o leitor de forma desafiadora, atrevida - comportamento próprio da personagem. E todos estes elementos estão em vermelho, como o sangue que cai na terra ocre. É o sangue dos bichos mortos no sítio antes de irem para a panela. É o sangue da menstruação que desce nas descobertas do próprio corpo da menina-moça. É o sangue do parto sofrido; dos abortos desejados e indesejados. É o sangue que se espalha no impacto de uma queda...
O livro é estruturado em uma divisão de treze capítulos. Cada capítulo marca uma idade específica das gêmeas e se inicia com um narrador onipresente contando certos acontecimentos de cada época. Mas à medida que as idades avançam, a história vai ganhando fôlego com as cartas que Lana escreve para Line e que vão aparecendo de modo não linear logo após a narrativa principal em cada capítulo. E esta é a grande mágica do livro. Maria Fernanda conta de forma coerente e consistente a história em cronologia não linear, de modo que toda a trama vai sendo entregue aos poucos, em pequenas doses que prendem o leitor do início ao fim.
A escrita de Maria Fernanda é fluida, com fortes traços de oralidade e, talvez isso explique o sabor de interior existente no texto. E apesar da história ser triste e forte, às vezes o leitor consegue ler como se estivesse sentado no galho da jabuticabeira do sítio do tio Valter e da tia Dodora, saboreando a fruta fresca.
Em Você me espera para morrer? esta promessa de infância acompanha e perturba Lana dos seis anos até a maturidade. Ao longo das décadas, ela vai dividir com a irmã ausente suas mais íntimas e terríveis fantasias, descobertas, frustrações, lutos, culpas e dores, muitas dores. E como ela mesma diz: "O amor nunca é puro, ele vem misturado com umas partes sujas".