Como vim parar aqui
"De repente, o fantasma pálido da literatura
transformou-se numa grande divindade para mim."
Hermann Hesse
Mathias de Alencar
Há muitas maneiras de começar algo na vida. Há muitas outras, também, de começar a escrever. Nem sempre o começo da escrita se aproxima do momento certo na vida. Quase nunca a vida se aproxima do momento certo de fazê-la dizer algumas palavras, e mais raro ainda ela nos sugere as palavras certas para dizer o que se vive. Apesar – ou antes, em razão disso, há que se começar a fazer a vida dizer mais do que ela insiste em silenciar, ou a fazer as palavras se aproximarem, mais do que podem, daqueles momentos certos que precisam ecoar seu sentido. Eis a tarefa, a vocação do escritor. Na palavra está nossa origem, e destino. Em razão disso, comecemos nosso momento literário desta coluna da melhor forma possível: com algumas palavras de boas-vindas.
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Sejam bem-vindos ao novo ano que se inicia. Bem-vindos à nova edição da Revista O Zezeu, e a este espaço, gentilmente aberto pelo convite dos queridos Lulih Rojanski e Silvio Carneiro, em que poderemos nos encontrar todo mês para falarmos de literatura. Optei por chamar nossa coluna de Olhos de ressaca, uma homenagem a vocês-sabem-quem. Mas é também uma referência irônica à minha condição de leitor, embriagado porém desconfiado, e sempre precisando de uma nova dose de poesia, que é para neutralizar as casmurrices do dia a dia. Se vocês também são de ressaca, vieram ao lugar certo. Tome seu melhor assento e aprecie. A experiência estética, mesmo quando provocada por algo terrível, permanece sendo fonte inesgotável de prazer.
Mas se vamos falar de experiência estética e de literatura, preciso contar como vim parar aqui.
Desde logo – prazer, sou Mathias de Alencar.
Quando me descobri escritor, no momento em que responsabilidade e abandono se confundem na mesma idade, achei que eu tivesse alguma coisa especial para dizer. Antes disso, eu era apenas um garoto fascinado por jogos de videogame e de RPG[i], fascinado sobretudo pelas histórias que os jogos contavam, pela diversidade das personagens e de seus papéis na trama. Dos livros que tive de ler na escola, da saudosa Série Vaga-lume, só me interessavam os que trouxessem aquela mistura indissociável de heroísmo e criatividade a que os jogos me incentivavam. Daquela época da vida, porém, sou capaz de afirmar que, se cada qual encontra uma porta de entrada para a literatura, o meu festim com as narrativas veio sempre partilhado. Fossem jogos ou livros, era a presença de outros ao lado o que conferia sentido ao meu desejo crescente de poder criar minhas tramas, de nutrir prazer em contá-las. O primeiro livreto que ousei fazer com as próprias mãos, por volta dos doze anos de idade, se justificava pelo que senti ao olhar os amigos interessados em tê-lo nas suas próprias. Algo dessa emoção acompanha ainda hoje minhas experiências estéticas, uma sensação de pertencimento, como se a palavra escrita traduzisse os movimentos solitários de pessoas tão diferentes de mim, como se os versos partilhados desenhassem um pequeno trajeto de proximidade com alguma coisa de muito especial que precisamos compartilhar. A literatura é feita de pessoas. A solidão da leitura e da escrita, eu soube depois, não era o fim, mas o meio pelo qual criamos laços quando criamos arte. É por isso que a arte nos humaniza.
Algo dessa descoberta é o que espero poder fazer emergir neste espaço, como sentido para nosso diálogo – sim, que nos seja um diálogo, por favor: sou avesso a monólogos... Falar sozinho é para os loucos, para estes que não são ouvidos ou não pretendem sê-lo. Há qualquer coisa de desumano no silenciamento. Mas há, por outro lado, qualquer coisa de divino na loucura. Essa relativa falta de enlaçamento pela comunicação diz muito sobre a ingratidão dos que se negam a ouvir quem não lhes confirma a rotina, o ritmo, a mesmice das opiniões comuns. A loucura acontece como um longo respiro para uma cultura sufocada, e recusar ouvi-la, na diferença do que anuncia, é só uma maneira de se afogar mais rapidamente. Se vocês percebem aonde quero chegar, veem que há uma linha tênue aqui: balançamos entre o bestial e o divino, porque o humano é a corda bamba que só se atravessa com muita dificuldade. Para onde vamos? Não há uma resposta única. Mas é possível estar mais atento à caminhada. As artes em geral, e a literatura em especial, despertam a consciência para o maior de todos os prazeres: o de pertencer à vida.
Se sou grato à vida, é porque a literatura me salvou. A vida sem arte é um engano. É um erro, por isso, não se dar conta de que jamais estamos sozinhos. Na leitura, descobri minha voz no exato instante em que ouvia tantas vozes diversas. Não era um vozerio, absolutamente. Era um espelho a partir do qual eu conseguia definir minha própria imagem, sem esperar dos demais que fossem cópias mal feitas do que penso e faço. A leitura era o segredo da vida interior que borbulhava em mim, querendo remover suas pedras e vazar sua correnteza. Só publiquei meu primeiro livro, os versos de Poemalimpo (2015), quando tive certeza de haver modulado minhas palavras para além de um grito estridente e juvenil. Meu segundo livro, o romance Falosofia de Mulher (Multifoco, 2016), consolidou o exercício de transfigurar longos anos de conflitos e de angústias existenciais em objeto de fruição estética – e o retorno que obtive das leituras desse livro me dão a impressão de haver conseguido. Devo o aprendizado desse exercício aos livros que me formaram, às pessoas que me apresentaram aos livros, e ao momento oportuno em que encontrar pessoas inspiradoras, sabendo elas ou não, faz toda a diferença para quem não perde a oportunidade em aprender.
A literatura, repito, é feita de pessoas. Sou muito grato a cada uma que me dispôs à escrita pela poesia provocada, pela prosa agradável, pelo diálogo sem hora para acabar. No ano passado, ao publicar meu novo livro de poesia – Ninguém há de doar-se a dois amores ou Julieta (Folheando, 2023), conheci pessoas inspiradas que fazem a arte acontecer no Amapá, de onde escrevo esta coluna, e aproveito para dedicá-la a todas aquelas que me têm ajudado a escrever as páginas amazônicas de minha história. Sem vocês, palavra alguma, dita neste espaço, teria sentido. É por isso que, ao falar um pouco de mim, não pude deixar de voltar meus olhos para quem até aqui me trouxe. Eu sou vários, e se não ando sozinho, é por acreditar que pelos livros somos mais nós mesmos.
[i] RPG é a sigla para Role-Playing Game, um tipo de jogo em que cada jogador atua como uma personagem em uma narrativa fantástica, mediada por um Mestre que atua como uma espécie de diretor/roteirista da peça.