Entre o Amor e a Solidão:
Uma Conversa com Ana Suy
Sigmund Freud, o pai da psicanálise, definiu o amor como um fenômeno complexo, uma teia intrincada de desejos, pulsões e projeções. Para Freud, o amor é uma força motriz que surge do inconsciente, influenciado por nossas experiências infantis e pelas relações com figuras parentais. Jacques Lacan, por sua vez, ampliou essa visão freudiana, enfatizando que o amor é uma busca constante pelo "Outro", um desejo que nunca se sacia completamente, uma tentativa incessante de preencher as lacunas deixadas pelo desejo. Lacan sugeriu que o amor é uma promessa de algo que sempre está um passo à frente, algo que toca na essência do que significa ser humano, sempre em busca, sempre faltante.
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Neste cenário psicanalítico, onde o amor é tanto cura quanto ferida, entra Ana Suy, uma voz poderosa e sensível que navega pelas águas turbulentas do amor e da solidão. Psicanalista, escritora, professora universitária e uma pensadora profundamente conectada com os labirintos da mente e do coração humanos, Ana Suy transforma suas experiências e conhecimentos em literatura que toca a alma.
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Com uma formação sólida em psicologia pela Pucpr e uma especialização em pesquisa e clínica em psicanálise pela Uerj, Ana traz um olhar único sobre as complexidades do amor. Seu doutorado, mestrado e a prática clínica são os alicerces de uma carreira dedicada a entender as nuances do desejo, do afeto e da dor. Mas engana-se quem pensa que esses títulos lhe dão o ar pedante de muitos acadêmicos. Autora de best sellers como A gente mira no amor e acerta na solidão (Paidós; 2022) e de outras obras significativas como Não pise no meu vazio (Planeta; 2023) e As cabanas que o amor faz em nós (Planeta; 2024), Ana Suy explora os confins da psique humana com uma sensibilidade rara e uma profundidade analítica que nos convida a refletir sobre nossas próprias vivências afetivas.
O Zezeu: No seu livro A gente mira na amor e acerta na solidão, você explora a interconexão entre amor e solidão de uma maneira muito poética. Como você utiliza a linguagem literária para transmitir essa complexidade emocional e como isso se reflete na experiência do leitor?
Ana Suy: Eu penso que amor e solidão, na maneira como eu vivo, eles são a mesma coisa, ou melhor, eles são elementos do mesmo material. E eles desembocam para experiências na vida que são diferentes, mas eles são o mesmo lugar em nós. Por isso que eu escrevo lá que se não fosse a solidão não seria o amor, que se não fosse o amor não seria a solidão, que quem não suporta a solidão também não suporta o amor, porque não tem como separar muito bem a solidão do amor. Eles são a mesma experiência.
É que na situação que a gente tem com as boas experiências da vida e com o sofrimento, a gente tende a separar, porque quando a gente tem boas experiências com o amor, a gente não sente a solidão doer. E quando a gente tem experiências doloridas de solidão, a gente esquece do amor naquilo que nos toca no corpo e se lembra do amor enquanto um ideal, enquanto uma fantasia inatingível e por isso a gente sofre com a solidão.
Mas isso não é tudo. Às vezes a experiência de ter um bom encontro amoroso nos toca no que há de mais solitário e por isso o amor é sempre insuficiente de alguma maneira. Isso não quer dizer que seja
O amor é sempre insuficiente de alguma maneira
sofrido sempre, mas é sempre insuficiente para dar conta do exagero que nos é acordado quando a gente vive uma experiência amorosa.
Se a gente encontra alguém que dê conta disso tudo, isso é mortificante, isso é abusivo com a gente mesmo. A gente dá pra falta, pra manter o amor vivo e acho que solidão é um nome pra falta. Vazio é um outro nome que eu dou pra falta.
Eu não sei como é que eu faço pra utilizar a linguagem literária, como você coloca na pergunta. Eu acho que eu só sei usar a linguagem de um jeito, que é
esse jeito que eu tô falando com você, que é esse jeito que eu escrevo. A diferença que eu coloco é me autorizar a falar mais um "lacanês" quando eu tô entre psicanalistas, cuidar pra não me empolgar nesses jargões quando eu tô falando com o público amplo, assim como a gente adequa a linguagem quando vai falar com uma criança e tenta utilizar palavras não tão rebuscadas, mas ao mesmo tempo tenta não menosprezar a inteligência da criança e falar como se ela não tivesse [inteligência]. Então uso umas palavras rebuscadas, sim.
Enfim, eu acho que a linguagem é um grande parque de diversões, é uma grande alegria na vida poder encontrar prazer na linguagem, desfrutar das palavras, ter bons encontros com elas e a partir delas fazer da vida uma experiência tão interessante.
OZ: Não pise no meu vazio parece ser uma obra que mergulha fundo nos sentimentos de excesso e falta, especialmente no contexto do amor. Como você constrói esses temas ao longo da narrativa? E de que maneira sua escrita busca tocar o leitor em um nível emocional
profundo?
AS: Eu acho que, assim como eu falei na primeira pergunta, eu não sei dizer que uso eu faço da linguagem literária. Talvez alguns
leitores mais técnicos possam me contar o que é que eu faço, mas eu não sei o que eu faço.
Também no Não pise no meu vazio, eu não busco tocar o leitor em um nível emocional nem mais e nem menos profundo. Eu apenas escrevo porque eu preciso escrever.
Os textos do Não pise no meu vazio, foram escritos alguns por pura necessidade, e são textos que a gente chama "de gaveta", nem era a
minha intenção compartilhar. Outros por uma necessidadede escrever. Não uma necessidade de escrever sobre um tema em específico, mas uma necessidade de escrever, que se soma a um convite de colegas. Porque uma parte dos textos do Não pise no meu vazio eu escrevi na época que eu participava de um coletivo chamado "Confraria dos Trouxas". Então era assim: a gente tinha seis pessoas, cada pessoa postava num dia - todo mundo a partir do mesmo tema - então eu tinha um compromisso com esses colegas primeiro e depois com as pessoas que nos liam, de que os meus textos saíssem às segundas-feiras.
E eu escrevi na "Confraria dos Trouxas", acho que, por quatro ou cinco anos seguidos, sem parar - tirando as férias que a gente fazia em janeiro e junho. Mas foi um grande exercício pra mim de escrita, claro, mas sobretudo de separação do texto, porque o compromisso que eu tinha com a publicação era maior do que a minha preocupação narcísica com aquilo que eu escrevia. Então esse exercício de publicar na internet, num blog, ele me ensinou muita coisa, inclusive sobre a velocidade que a gente tem em retorno disso. Porque é muito rapidamente.
Diferente de quando a gente vai publicar um livro, você demora muito pra ter retorno dos seus escritos. Porque, quando você publica um livro, o livro vai pra edição, pra impressão... ele leva meses pra ser publicado. Depois ele leva meses ou anos, às vezes, pra ser vendido. Depois ele leva meses ou anos pro sujeito ler, e mais um tempo até ele ficar interessado em te dar algum retorno. Então a gente leva muito tempo pra saber como é que o livro chegou pro leitor.
Agora, escrever na internet é muito complicado, e então assim, eu acho que eu tive a facilidade de poder aprender em um tempo curto de tempo, até. Eu acho realmente que quatro, cinco anos é um tempo curto na vida de um escritor que pretende fazer isso a vida inteira, né? Então eu acho que é um tempo curto pra aprender o quanto, por exemplo, com frequência, textos que eu escrevia e eu nem gostava muito, eram textos que eram muito apreciados pelos leitores. E o quanto textos que eu gostava muito de ter escrito e eu achava que ia dar boa, ia fazer sucesso, tantas vezes ficava meio de lado, nem era tão interessante pros leitores.
Então tiveram esses três textos, né: os textos que eu escrevi "de gaveta", os textos que eu escrevi pra "Confraria dos Trouxas" e aí, nessa edição do Não pise no meu vazio, que é uma edição publicada, tem textos que eu já coloquei lá, que eu já escrevi, já pensando que tinha um livro, já pra escrever enquanto um livro. Então eu acho que esses textos se configuram num espaço de transição entre o primeiro e o segundo, porque nem é um texto puramente "de gaveta" - porque eu já tinha uma certa mira de publicar - e nem é um texto que é um texto pro outro, nem é encomendado pro outro - e que por isso eu vou publicar de qualquer jeito, né - enfim, é um pouco por aí.
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Mas a ideia central dessa pergunta é poder dizer que eu não escrevo pra tocar ninguém. Eu me descrevo até como pouco ambiciosa, e acho que isso tem relação com o tanto que eu fico feliz com o sucesso desses livros que eu tenho feito e dos leitores, não só dos livros, mas também das redes sociais e do alcance que eu tenho, do número de leitores que eu tenho hoje, porque eu nunca esperei muita coisa disso. Nunca exigia muita coisa disso, era só eu tentando sobreviver.
Eu não escrevo pra tocar ninguém. Sou pouco ambiciosa... Eu nunca esperei muita coisa disso. Nunca exigia muita coisa disso, era só eu tentando sobreviver.
Eu já entendi que eu não vou conseguir me livrar desse tema do amor nessa vida, me parece... Espero que eu viva bastante e viva bem o bastante para poder seguir escrevendo.
OZ: No livro Amor, desejo e psicanálise, você discute conceitos teóricos complexos de Freud e Lacan de uma forma acessível aos leitores. Como você equilibra a apresentação dessas teorias com a narrativa literária, tornando-as compreensíveis ao público?
AS: Eu acho que é generosidade da sua parte dizer que os conceitos teóricos complexos são acessíveis aos leitores em Amor, desejo e psicanálise, porque aquele livro é feito muito a partir de uma escrita que é acadêmica, que é a minha dissertação de mestrado que gerou esse livro. Então eu acho que é um livro muito duro, tanto que quando eu escrevi essa dissertação de mestrado, eu pensei...
Eu escrevi, eu publiquei, fiquei muito feliz de publicar, mas eu guardei comigo um desejo de reescrever isso para um público amplo. E aí a vida vai acontecendo, eu não fiz isso, até receber o convite da [editora] Planeta para escrever alguma coisa para eles, para o selo da Paidós, e aí eu pensei, bom, é agora. Então eu resgatei aquele meu sonho de escrever um texto de psicanálise para o público amplo com o "amarelinho" (com A gente mira no amor é certa na solidão). Mas eu sinceramente acho que Amor, desejo e psicanálise é um texto bastante denso, ainda que tenha talvez um germe ali da minha escrita, do meu estilo de escrita, que é muito menos acadêmico e muito mais poético.
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Então eu acho que talvez você tenha capturado, gentilmente aí, um núcleo disso. Tanto que eu acho que a minha tese de doutorado que eu escrevi só depois, eu acho que ela ficou mais bem escrita. Mas ainda assim, é uma tese acadêmica, né? E eu ainda pretendo também reescrevê-la de uma maneira que eu converse mais com psicanalistas, mas também com o público amplo.
Enfim, eu já entendi que eu não vou conseguir me livrar desse tema do amor nessa vida, me parece... Então eu tenho muitas ideias de muitos livros para muito tempo de vida. Espero que eu viva bastante e viva bem o bastante para poder seguir escrevendo.
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Agora, acho que talvez isso toque no segundo e no terceiro ponto, na sua segunda e na sua terceira pergunta,
que é o fato de que eu penso que poder escrever sobre um assunto que é teórico de uma forma clara é efeito de descobrir que esse assunto não é teórico. Ou melhor dizendo, ele não é só teórico. Ele só é teórico porque é da vida comum. E a vida comum é o que interessa. Essa vida comum é o que vai desembocar a necessidade da teoria e vai desembocar na formalização que a teoria faz.
A teoria nada mais é do que uma formalização daquilo que a gente vive na vida comum. Então, a experiência de análise, sentar a bunda na cadeira, no divã, deitar no divã por anos a fio, falar com uma pessoa, falar consigo mesmo através de uma outra pessoa, uma, duas, três, várias vezes, muda a relação que a gente tem com a linguagem.
Absolutamente a minha relação com a escrita é efeito da minha experiência de análise. Acho que não teria uma reinvenção da relação com a linguagem, um renascimento do mundo das palavras, que eu experienciei na minha análise. Não quer dizer que todo mundo que vai fazer análise vai viver isso desse jeito, de diferentes formas, é alguma coisa disso que toca cada um.
OZ: No seu mais recente lançamento, As cabanas que o amor faz em nós, você aborda o desencontro amoroso e a poesia como formas de lidar com a dor emocional. Esse mundo de redes sociais e tecnologias descartáveis em que a gente vive, onde muita gente troca de parceiro, como troca de postagem nos feeds, seria a grande causa dessa dor nos dias de hoje?
AS: Eu não sou muito de pensar nessa coisa de causa e consequência,
porque eu fico pensando que não dá pra saber muito bem qual é a causa e qual é a consequência que diz que a gente vive. É meio que assim: Quem veio antes, o ovo ou a galinha? E estou dizendo isso porque me parece que não importa tanto achar a causa, mas importa muito saber o que a gente vai fazer com isso.
Então, acho que é inegável, muitos filósofos e sociólogos apontam, de fato, uma relação que a gente tem com os nossos objetos amorosos,
que se assemelha à relação que a gente tem com os objetos a serem consumidos.
Então, Bauman, por exemplo, ​Byung-Chul Han, vão ser autores importantes que vão sustentar essa tese - que acho que, de alguma maneira, cada um de nós comprova na vida, basta você prestar atenção em si, no outro, no mundo, você percebe que a gente tem essa história da "fila anda", esse cardápio de pessoas que são as redes sociais,
especialmente os aplicativos de relacionamentos, mas que não é uma coisa que é sem angústia, porque se isso fosse resolver a vida, está tudo bem. O problema é que isso nos lança numa busca desenfreada por alguma coisa que não só a gente não sabe o que é, como também não existe, porque a busca desenfreada pela pessoa perfeita nada mais é do que a busca por a gente mesmo.
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Eu prefiro ter essa angústia da gente ter opção e se perder com isso do que não ter opção.
Então acho que a gente se lança nessa busca insana de encontrar a gente mesmo através do outro e a gente não encontra, porque o outro fica dando notícias da sua alteridade.
Junto com isso, tem o fato de que essa história do relacionamento amoroso ainda é muito marcada pela história do casamento, da formação da família, e isso está muito entranhado no psiquismo, especialmente das mulheres, de que a ordem natural das coisas era, para se tornar uma mulher, seria se tornar mãe. Então a gente tem a marca de que, se torna mãe, se conhece o amor verdadeiro através da experiência da maternidade, e a experiência da maternidade ela é feita do encontro com um homem perfeito, com um homem que cuida, com um príncipe que salva, esses elementos que a gente tem aí da nossa vida e que estão fazendo parte do nosso psiquismo.
Então isso não é inegável que tenha consequências para a gente, por um lado, nos lançando nesse mais do mesmo, nessa maneira idealizada de buscar um par romântico e, por outro lado, a gente também tem novidades contemporâneas que vão dizer respeito ao avanço da ciência, ao avanço da tecnologia, ao avanço dos direitos das mulheres no mundo, que vão nos colocar numa outra posição de independência, de poder encontrar outros objetos de amor, outras formas de a gente se satisfazer na vida. Uma relação com o trabalho, com o dinheiro, com a vida pública, com a vida política, que nos afastam dessa dimensão que estava posta até então como a única possível para a mulher através da maternidade, da família e do amor romântico.
Só que, o que acontece: essas duas saídas, elas coexistem como imperativos para nós. Então, ao mesmo tempo que, psiquicamente, uma mulher sente um empuxo - "se case", "tenha filhos", "olhe o relógio biológico" - também uma mulher coexiste com um outro ideal: "não perca a sua vida", "você vai acabar com sua vida se for ter filhos", "invista na sua carreira", "não dependa de ninguém", "seja muito independente"... Então, cara, isso é a receita para o fracasso! Estou dizendo "fracasso" assim, o fracasso do encontro com a alegria na maneira de viver. Porque uma mulher pode ser tão bem sucedida de um lado quanto do outro. Mas não tem como ter tudo na vida.
Então eu acho que esse excesso de opções é favorável. Eu prefiro ter essa angústia da gente ter opção e se perder com isso do que não ter opção. Mas ninguém diz que isso facilita as coisas, complica de um jeito novo. Então eu prefiro essa complicação nova. Mas vamos lá que é uma complicação.
E eu estou falando do recorte das mulheres porque somos as mais afetadas, me parece. Mas isso também é para os homens, para todos os seres humanos. Todos os seres que estão vivos, estão de alguma maneira sendo atravessados por essas questões contemporâneas.
OZ: Você disse que, como escritora, não tem muitas ambições - no sentido de
escrever sem a pretensão de tocar o leitor - mas é inegável que seus textos se destacam
justamente por isso. É um desafio pra você explorar o tema do amor sem cair nos jargões da auto-ajuda?
AS: Olha, eu acho que... é uma pergunta muito boa. Primeiro quero te agradecer por essa pergunta. Todas são incríveis, mas essa realmente me tocou, porque eu nunca tinha pensado sobre isso. Então o que eu vou dizer aqui - eu tô elaborando agora, tá? - pode ser que eu mude de ideia. Mas eu diria agora que não, não é um desafio pra mim, porque eu só escrevo porque eu
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escrevo. Agora, o que me espanta é o efeito disso. Como eu falei, eu tenho um certo espanto com isso, com o que o outro lê, com os efeitos desses escritos no mundo. E um dos espantos que eu tive foi quando eu encontrei o livro A gente mira no amor é certa na solidão, na categoria de auto-ajuda, em algumas livrarias. Tem algumas que usam o tema "desenvolvimento pessoal", em algumas a categoria "não ficção", mas em algumas também tá na categoria "auto-ajuda". E eu achei péssimo! Fiquei pensando, entrei numa crise, pensei "gente, o que eu tô fazendo da minha vida? Isso é auto-ajuda"? - Porque eu sempre tive o horror, né? Da auto-ajuda...
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Gente, o que eu tô fazendo da minha vida? Isso é auto-ajuda?
E aí, depois, eu fui me apaziguando com essa história, muito especialmente depois que eu dei uma entrevista pra uma jornalista da Folha, que falou sobre o "desenvolvimento pessoal", essa categoria de "desenvolvimento pessoal", nova. Ela chamou isso de "auto-ajuda sofisticada". E eu achei muito interessante essa maneira de pensar, porque eu fui entendendo que essa "auto-ajuda", que essa palavra "auto-ajuda", da qual eu tinha horror - e tenho ainda, em alguma medida - é a auto-ajuda relacionada a um manual de "como fazer", a um manual de "cinco passos" - "faça isso, faça aquilo" - como se a gente pudesse subestimar ainteligência do leitor e levá-lo a acreditar que tem uma fórmula pra viver a vida; que tem uma fórmula pra viver o amor. E isso eu acho abominável.
Mas - e entendendo - primeiramente, quem eram os meus parceiros nessa categoria de "auto-ajuda"? Então tinha lá Ana Cláudia Quintana, por exemplo, A morte é um dia que vale a pena viver (Sextante; 2019), dentre outros - outras, na verdade, mulheres. Eu entendi que eu tava bem acompanhada, né? E aí eu fui entendendo, especialmente conversando com essa jornalista, que talvez o que a gente esteja chamando de "auto-ajuda" hoje tenha se modificado e seja muito mais plural. E aí, depois, eu vi o livro - que era o meu - na categoria de auto-ajuda, e aí eu entendi que, para mim, a verdadeira auto-ajuda, essa que eu tenho respeito - não essa que eu abomino - é a poesia.
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A literatura é uma forma de auto-ajuda... Quantas vezes a gente não encontra salvação pela via da literatura? Eu mesma encontrei.
A literatura é uma forma de auto-ajuda, né? A literatura que eu acredito, a literatura poética - no sentido de que não é exatamente uma auto-ajuda, porque tem alguém que escreveu o livro. Então você tá numa relação com o outro. Mas quantas vezes a gente não encontra salvação pela via da literatura? Eu mesma encontrei salvação pela via da literatura e não foi uma salvação direta, porque eu precisei do meu processo analítico, da minha relação com a psicanálise para encontrá-la. Mas não deixa de ser alguma coisa que me é tão cara nesse lugar. Então, é isso.
A minha preocupação é como isso reverbera no outro. Porque eu acho que eu nunca tive a preocupação de não escrever "auto-ajuda". É porque isso não é meu - escrever auto-ajuda, essa auto-ajuda escancarada, pornográfica, explícita, onde tá dizendo o que é que o outro precisa fazer, isso não é meu - mas, se fosse um dia... - isso eu acho que é importante - E se um dia eu quiser escrever "auto-ajuda", eu quero poder escrever. Esse é o lugar da escrita para mim. É um pequeníssimo espaço de liberdade do acesso a mim mesma; da minha relação comigo. Então, se um dia eu quiser escrever auto-ajuda e eu escrever auto-ajuda, eu vou ficar feliz comigo. Porque eu tô sendo honesta com a minha escrita. E isso é a coisa que mais me importa.
OZ: Sua obra mergulha na complexidade das relações humanas. Como você acredita
que a literatura pode contribuir para a compreensão e transformação dessas dinâmicas relacionais,
especialmente quando combinada com os insights da psicanálise?
AS: Eu acho que a psicanálise,
assim como a literatura, elas fazem uma aposta no nosso pacto social, no nosso pacto civilizatório, no nosso pacto cultural, que é sustentado pela aposta no simbólico, pela aposta na dimensão
da palavra. Então isso me interessa.
Acho que são diferentes formas da gente ter uma experiência de
linguagem que muda a vida. A escrita e a literatura são uma experiência de linguagem que podem ter
a oportunidade de mudar a vida. De todo mundo? Absolutamente não. De algumas pessoas. De algumas
pessoas que são bastante numerosas, mas ainda assim algumas pessoas.
A psicanálise é uma
experiência de linguagem que não tem como sair ileso dela, quem entra. É absolutamente impossível sair ileso da
A psicanálise, assim como a literatura, faz uma aposta no nosso pacto social, civilizatório, cultural, que é sustentado pela aposta no simbólico, na dimensãoda palavra. Então isso me interessa.
experiência analítica. Mas todo mundo entra? É claro que não. Todo mundo é gente demais. Todo mundo é tanta gente que nem existe.
Então eu acho que a psicanálise, tal como a literatura, elas são irmãzinhas - nesse sentido daquilo que é vitalizante no nosso laço social. E por isso são duas apostas que me parecem muito interessantes da gente conseguir apostar alto. E o efeito disso só pode ser vitalizante também, né? Só pode ser entusiasmante.
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Eu nunca ouvi falar de alguém que fez psicanálise e se tornou violento. Alguém que entrou no mundo da literatura e ficou violento? Não. Porque são maneiras, inclusive, da gente poder dar um destino para a nossa agressividade.
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Então uma pessoa, por exemplo, que é muito ensimesmada, mas ela se maltrata muito, a agressividade fica direcionada para si. Talvez numa análise, talvez numa aposta com a literatura, ela possa sair um tanto de si, né? E aí pode ser que alguma coisa da agressividade que não estava lá apareça e pode ser que alguém ache que ela está piorando, né? Isso acontece bastante, especialmente com as crianças. Mas não é disso que se trata. Mas se trata da gente poder se deparar com aquilo que há de, por vezes, horror também em nós e fazermos alguma coisa com isso, darmos um tratamento para isso. Por isso que esse canal da conta - a literatura - são apostas no simbólico e no pacto social. E no nosso laço com o outro. É isso.
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Eu acho que boa parte da dimensão do que toca nas dificuldades e nos sofrimentos amorosos tem justamente relação com a gestão das nossas ambivalências: a gestão do ódio; o que a gente faz com o revés do amor. Porque não tem como mandá-lo. Não tem como a gente só amar, só ser fofinho, só tudo funcionar bem. O amor traz junto o seu irmãozinho - que é o ódio - que é feito do mesmo material genético que o amor. E amar alguém então é também odiar alguém. A gente fica muito atento ao objeto do nosso amor, por isso o Freud vai dizer que o contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.
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Então o que a gente faz com esse ódio que a gente tem pelas pessoas que a gente ama? Se a gente entra nessa onda do que tem se chamado de "positividade tóxica", de você dizer só que o mundo é bom; só pensar coisas boas e que tudo funciona bem, a gente tende a menosprezar uma bomba relógio em nós, que é essa dimensão do nosso universo. E eu acho que a psicanálise, assim como a literatura, consegue ao invés de recalcar, ao invés de mandar embora e fingir que não vê esse nosso avesso, chamar para conversa, trazer para fazer isso virar uma história, trazer isso para um poema, trazer para falar disso na análise, sem se utilizar demais consigo mesmo e poder assumir essas nossas hipocrisias, ambivalências, esses nossos lados sombrios - não para sucumbir a eles, mas para utilizá-los como um motor para aquilo que nos entusiasma na vida.