Do que é feito o fazer poético?
Tudo bem. Vocês podem dizer, caso eu pergunte o que foi feito da poesia, que ela vai bem, obrigado. Continua aí, não vendendo lá grande coisa, talvez nunca tenha vendido muita coisa mesmo, o que não seria novidade que chegasse a atentar contra sua existência. Porque mesmo sem vender muito, há e haverá sempre alguém que, no reservado de seu quarto ou num café de livraria, irá folhear um livro de poemas, com relativo deleite e quiçá alguma inspiração para compor igual. É verdade, portanto: a poesia não morreu. Os livros não morreram, apesar dos Kindles, dos PDFs, a despeito da TV, da internet, das redes sociais. Em um futuro não tão distante, pode ser que eles se tornem, como já foram antes, objeto de posse das camadas privilegiadas, em razão, talvez, de alguma medida para conter a produção de celulose e evitar a monocultura do eucalipto. Contudo, é fato que atualmente se produzem mais livros que leitores – uma realidade, digamos, paradoxal que atenta sobretudo contra os que, se imaginando escritores, esperam de outros o que eles mesmos não são: leitores. Pensou-se muito na oferta ou no acesso aos livros, mas raramente na maneira de se criar uma familiaridade com eles.
Com a poesia não tem sido diferente. A vastidão de livros poéticos no mercado pode parecer ter facilitado o acesso do público, até então marginalizado, a uma vivência da cultura letrada, porém o que vemos é, bem ao contrário, uma dificuldade crescente de se entender, afinal, o que se faz quando se faz (e se lê) poesia. Acreditar que a mera criação de escolas produz educação é supor, no fim das contas, que a matrícula na academia é suficiente para perder peso e alcançar uma vida saudável. Tudo bem, sei que muita gente gostaria que fosse assim (eu mesmo me incluo nessa), mas a realidade é outra. Sem formação, não há informação que chegue a ter valor. E com a poesia, vale repetir, não seria diferente.
Qual o valor, então, daquilo que a poesia faz? Nossa palavra procede do verbo grego poiein, que significa fazer, no sentido de produzir algo. As artes poéticas são produtoras, e como arte, seu produto tem a qualidade do artista, entendido como artesão, como aquele que elabora, desde certos materiais, um algo outro dotado de utilidade e de significado. Esse produto, essa obra realizada, é fruto então de uma ação humana. A poesia, como a entendemos desde então, é um tipo dessas artes, aquela que produz sobre nós um efeito específico a partir da reprodução de ações humanas. O produto da poesia é, portanto, o modo desse acontecimento artístico, aquele em que ações humanas são representadas para provocar no espectador/leitor a experiência, a vivência simbólica de espelho à qual os gregos davam o nome de mimética.
A reflexão sobre essa mimese rendeu séculos de páginas filosóficas, porque o fenômeno é não só complexo, mas apaixonante. Indagar sobre a razão de darmos tanto valor à arte em geral, e à poesia em especial, é conhecer, no fundo, a raiz do que significa sermos humanos. Há nisso o aspecto simbólico decisivo do ritual: a ação repetida sob certas trilhas de significado tem sobre nós um efeito mágico, algo que nos move o corpo porque nos comove a alma. Na cena ritual, o mito ou o canto, essa realização ancestral da linguagem como poesia, está impregnado de repetições, no ritmo que faz da palavra o convite para sair de si até se reencontrar. O produto poético, se tivermos que defini-lo, é sobretudo uma artesania da palavra, que produz o efeito catártico do êxtase de nos reencontrarmos através da partilha de nossas vivências.
Isso pode parecer bastante filosófico, e realmente é – afinal, sou filósofo, não posso evitar essa minha paixão pelo complexo. Mas confesso que a maior dificuldade para se entender o que eu disse esteja exatamente no tipo de poesia que realizamos hoje, e que se afasta enormemente dessa raiz ritual do poético. Alguém deve estar errado – pode ser eu, não ligo. É que para mim não faz sentido escrever e ler poesia se não for para, de algum modo, vivenciar essa transposição ritual do compartilhamento de significado das nossas ações, para me reencontrar ao sair de mim, para ser mais eu mesmo ao ser em comum. Contudo, não sou só eu quem pensa assim, ainda bem. Há muita gente grande que me cedeu os ombros para eu ver mais longe. Dos maiores, o poeta e crítico literário Ezra Pound nos descreve a produção poética como manufatura composta por ao menos três aspectos decisivos: o que ele chamou de melopeia (a parte do poema impregnada de musicalidade, de som e de ritmo), de fanopeia (o lance de provocar a imaginação com sugestões sensíveis) e de logopeia (o que ele define como “a dança do intelecto entre palavras” [poetry that is akin to nothing but language, which is a dance of the intelligence among words]). Sem uma dessas qualidades, o produto não se faz poesia, e o próprio Ezra Pound, deveras impopular em suas polêmicas literárias, legou-nos uma obra poética densa e bem trabalhada, cuja riqueza artesanal em seus Cantos, por exemplo, exalam a potência do que viria a ser, desde Whitman, chamado de verso livre – reconhecidamente o verso modelar do atual modo de se fazer poesia.
Ocorre que nem tudo que parece é assim tão livre em poesia – já dizia T. S. Eliot, outro grande poeta e crítico literário (no verse is free for the man who wants to do a good job). Isso é o mesmo que dizer não haver good job sem bastante work. As técnicas do verso livre acabam por levar o poeta, que não as conhece, a produzir no fim das contas um flatus vocis poético, espécie de vozerio de mercado sem beleza e sem sentido. Eis uma opinião difícil de aceitar hoje em dia, época de profusão dos poemas sem som, dos versos sem imagem ou sem inteligência. Posso estar errado – tudo bem, não ligo. Mas a razão principal da perda de prestígio do ato de produzir versos ainda me parece ser o fato de qualquer um se acreditar livre para reinventá-los do nada – quando, a bem da verdade, ex nihilo nihil fit [do nada nada se faz].
A época dos épicos está findada./ O lírico sem lira chora pelos cantos./ Perdeu-se o drama no drama sem poesia./ A palavra agora labora onde puder./ Sem métrica ou rima, apenas tétrica sina... Sendo este o atual estado de coisas, eu, de minha parte, brinco com esses alexandrinos (tão malvistos como amarras à inspiração poética, por terem a mais difícil das métricas em português) para ironizar a revolta moderna, incapaz de invalidar o vigor da poesia de mestres como Cabral de Melo Neto ou Manuel Bandeira, em toda aquela métrica matemática do primeiro e subjacente à libertinagem do segundo, ou do próprio Pound, que invoca musas em um épico modernamente aterrador – embora sejam já outras as musas dos Cantos, ainda que ele produza, com isso, um épico outro, quase em nada épico. Porque, a bem da verdade, a arte literária se realiza por essa construção de uma comunidade de partilha do prazer da fantasia, quando torneada pelo repetido labor com que cada época traduz e reluz sua beleza em palavras, estabelecendo um diálogo criativo com mestres de outras gerações, numa conversa atemporal que faz do verso algo sempre novo em sua potência de dizer o mesmo.
O ritmo desse legado é o que, de um modo ou de outro, nós atualizamos ao compor e ao ler poesia, como os nativos desta terra atualizam a criação do mundo toda vez que são parte das origens pela performance de seus cânticos, pela tradição da música, da dança e da artesania de seu ritual poético em comum. Ler e compor poesia, mesmo no reservado de seu quarto ou num café de livraria, é pertencer ao atemporal do sentido de ser um com todos. Quem pensa estar impondo limites a sua expressividade por seguir o esforço milenar de talhar o verso na precisão das formas poéticas, mesmo as livres, não sabe que limita o alcance de sua própria fala pela pouca ressonância de uma palavra que se quer poética, porém sem poesia. A poesia tem história, também tem artesania. Posso estar errado, eu não ligo. Mas não será pequeno quem se eleva até à arte, em vez de fazê-la descer ao rés-do-chão.