E quem não haverá de doar-se à poesia de Mathias de Alencar?
Silvio Carneiro
Não sou leitor de poemas. De modo que me deparo com um duplo desafio: Primeiro, o de ler um livro cuja narrativa toda se desenrola num longo poema. Segundo, o de tentar colocar em palavras tal experiência.
Quanto ao primeiro desafio, confesso que o mais difícil para mim é reeducar o meu olhar e a minha mente, tão acostumados à pressa da leitura dos textos em prosa que leio diariamente, para uma leitura mais lenta; compassada - ritimada, até - que me propõe a poesia. Então preparo a minha estratégia: Armo uma rede na varanda, de frente para um típico quintal amazônico cheio de árvores contrastando com um céu azul e um sol radiante. É sábado de manhã e vivemos sem pressa. Pego o novo livro do poeta, escritor e professor Mathias de Alencar, Ninguém há de doar-se a dois amores (ou Julieta) (Folheando; 2023), e me deixo doar pela leitura.
Extremamente bem escrito e estruturado, Mathias consegue reencarnar a clássica tragédia shakespeariana de Romeu e Julieta em um Rio de Janeiro do século XXI, mas sem cair nas mesmices e
lugares comuns das milhares de readaptações escritas nos últimos 400 e tantos anos.
É, sem dúvida, um texto que reflete erudição por parte do autor sem, no entanto, resvalar no pedantismo e na bossalidade tão comuns aos eruditos. Em todo o livro vemos um desfile de influências que vão de Camões e Petrarca a João Cabral de Melo Neto. De um lado, a quase inocência de uma Júlia/Julieta que desafoga suas angústas em sonetos cuidadosamente metrificados. De outro, um Romualdo/Romeu que canta sua vida difícil, seus sonhos e suas memórias em versos tão livres quanto seu espírito. Temos esta configuração na primeira parte, o Idílio.
Mas chega um momento em que, passado o Delírio, na segunda parte, quando os protagonistas se encontram, chega-se ao Martírio (a terceira e última parte) onde a inocência, as angústias, os sonhos e as fantasias trocam de lado e Mathias, magistralmente, brinca de trocar os estilos de narrativa das personagens.
Termino a leitura de Ninguém há de doar-se a dois amores (ou Julieta), com a sensação de que talvez o meu distanciamento da poesia, até hoje, tenha se dado muito mais em função dos incontáveis medíocres que se autointitulam poetas, do que propriamente da poesia de qualidade feita por poetas de verdade como Mathias de Alencar.