Quem diz outra coisa é besta
Todo escritor sabe o quanto é terrível uma página em branco. Querer riscar alguma coisa, esboçar alguns traços que tornem possível materializar o que vai dentro do peito ou da mente, para tentar de algum modo comunicá-los. É um martírio. Principalmente se o interesse é fazer algo que preste. Não simplesmente dizer por dizer, numa verborragia lamentosa e confusa. Mas algo que valha a pena ouvir, ler, reler, de ser tomado como modelo ou como fonte de inspiração. Nem sempre dá certo. O grande barato, porém, é perceber que a tal página em branco é uma espécie de metáfora dos nossos dilemas na vida. A sabedoria popular, suspeitando disso, logo vaticinou que a primeira impressão é a que fica. A merda toda é saber como começar, porque depois a merda está feita. Depois que fala, não dá para voltar atrás, como a merda (e veja só, as palavras são tão maliciosas que vocês podem achar que eu falei, nesta última frase, de algum apetite culinário, mas espero não chegar a esse ponto, embora vocês duvidem, e talvez eu também).
Pois é. Ninguém é tão puro que já não tenha feito a metáfora do falar com o cagar. Convenhamos, a sabedoria popular acerta em cheio, e quando a ciência diz que o intestino é o segundo cérebro, veio apenas confirmar uma verdade milenar. Mas, creiam, não era minha intenção expor nesta coluna apreciações escatológicas, muito menos cagar regras de conduta ou de toilette. São as palavras, essas malditas. Sempre dizendo mais do que se quer, indo para onde sequer temos ideia. A eterna luta verbal, de que falavam Gullar e Drummond, não é só coisa de poeta e de escritor. Ao menos, não deveria. Fato é que a maioria não esquenta bulhufas com o que fala, e o que nos obriga a ouvir. – Ah, faça-me o favor, não sou obrigado! Seu direito de falar termina onde começa o meu de ouvir (ou não). Voltaire, sobre isso, falou merda, com aquela bendita frase sempre repetida pelos que, na defesa de sua suposta liberdade de expressão, cagam pela boca, como só soubessem usar a cabeça de baixo. Cabeça não, desculpem. A boca. Se eu falar da cabeça de baixo, iremos parar em excrescências pornográficas, e sei que vocês não querem ler isso (sei não...).
Deixem-me tentar retomar o fio da meada (calma, eu sei que vocês não estão me impedindo, foi só um modo de dizer...). Eu dizia da tal página em branco, e isso me lembra um certo inglês, John Locke, que cunhou a famosa expressão tábula rasa para dizer que nós não nascemos com ideia inata alguma, nada que pudesse dar a ver o que faríamos de nossa vida quando então começássemos a falar. Pois é, para ele, somos uma espécie de página em branco, destinada a escrever uma história que será lida, se tudo der certo, no juízo final. Afinal, é reconfortante saber que terá alguém para ler nossa vida (tudo bem, não parece nada reconfortante para quem não faz da sua vida um livro aberto, como eu [outra vez, por favor, nada de apetites culinários aqui! Felizmente ainda não existe autoantropofagia, não é?]). É apenas felicidade de não ser esquecido, se bem que muita coisa seria melhor esquecer. Mas não tem como. Esse livro, que é o nosso corpo, guarda todos os riscos do que vivenciamos, e mesmo sem ser publicado, quem souber ler além da capa e da contracapa vai se dar conta do drama. Somos riscados, e se não arriscamos, vivemos pouco. Maktub, diz o Paulo Coelho com aquela palavra árabe: estava escrito, pois o que se escreve segue o que foi escrito desde o início pela primeira palavra que escreveram sobre nós (conservo aqui, maliciosamente, os dois sentidos de sobre: 'acerca de' e 'em cima de'. Daimoníaca essa nossa língua!)
Ainda sobre a tal da primeira palavra, da página em branco. Ouvi dizer que os chineses, sempre muito entendidos de verdades milenares, já diziam que uma palavra pronunciada é uma oportunidade perdida. Para mim, esse é o mais terrível da página vazia. Não exatamente o fato de não saber o que se vai dizer, mas o de saber que, uma vez dito, acabam-se as possibilidades de dizer diferente. É um martírio. A frase que a muito custo inicia o processo não abre mão de levá-lo até o fim. É o fado da linguagem. Muitos tentam contorná-lo por uma arte do silenciar, mas não é lá muito humano ficar de boca fechada o tempo todo. No fundo, se em boca fechada não entra mosca, como diz o ditado, é porque a merda está lá, só esperando o momento certo para iludir os que primam pela polidez. Nem os franceses, tão polidos, recusam dizer um merde! em alto e bom som para quase tudo, sendo mesmo no teatro palavra de ordem para dar sorte. E as crianças, iludidas de que ninguém puro fala palavrão, descobrem com o tempo que essas palavras grandes (ou de gente grande), sempre curiosamente pornográficas, são o que há de mais eficaz para expressar sentimentos de raiva e de indignação, até mesmo entre santos. Como não estou com raiva (nem sou santo), me refiro ao palavrão apenas para sugerir que, doutra feita, deve haver alguma possibilidade de não deixar que a palavra inicialmente dita escreva nossa história até a próxima cagada, ou até a puta que pariu – o que, curiosamente, parece um círculo vicioso, porque ir à puta que pariu é, na verdade, voltar de onde veio. Se o escritor sempre pode rasgar a página e começar tudo de novo, o nosso corpo, que não pode nascer de novo, depende das palavras aprendidas para dizer a si mesmo que enquanto há vida, há esperança (essa que, dos males, é o pior – é uma merda ter esperança!).
Sou quase sempre mais pessimista que otimista, mas em se tratando de palavra, convenhamos, nenhuma me faz pesar tanto a alma quanto me pesa toda essa máquina do mundo. Na palavra, eu me alivio. Pois sempre há uma nova ou até então desconhecida, ou sempre haverá um sentido novo a ouvir e a dizer. Por eu ser leitor um tanto fissurado (que beleza de palavra: fissura, estar rachado, com uma fenda aberta, mas também estar apaixonado, enlouquecido...) em degustar inícios e prólogos de livros, em observar as potencialidades da frase que abre as narrativas, percebo que as melhores tramas são as que conseguem exatamente trazer à tona o que a primeira frase quis dizer, embora como uma suspeita, uma promessa. Mas estava ali, desde o início. Só então me dou conta de que não há por que lamentar as inúmeras possibilidades perdidas ao dizer as primeiras palavras. O verdadeiro martírio é olhar a página em branco, tudo o que ela pode ser e fazer e dizer, mas nada ouvir ali ainda de tudo o que pode ser dito naquela folha – lugar onde tudo é possível, e nada existe. A primeira palavra é, ao menos, a certeza de que existe algo, de que se poderá dizer e fazer e saber tudo o que couber até a página final. Os hebreus, ao dizerem da criação do mundo pelo verbo divino, parecem ter razão. A palavra cria, a palavra muda (até que, muda, ela para de mudar). Sempre haverá, por certo, a possibilidade de dizer algo mais, além do fim que parece fatalmente escrito pela primeira frase – sobretudo ao dizer, no fim, um novo sentido para o que havia sido dito desde o início.
Qual poderia ser o sentido de dizer tudo o que dissemos (ok, vocês não disseram nada, é só uma tentativa de comprometê-los com esse plural majestático)? Que cada um descubra o seu – longe de mim cagar regras ou falar pelos cotovelos. No fundo, eu precisava mesmo era de uma primeira palavra, da frase que, uma vez dita, iniciaria o fluxo que me permitiria compor a coluna desse mês. Mas ter dito tudo o que eu disse me alegra (eu disse?). A tal luta verbal, essa guerra feito poética da composição, de que nos fala Cabral de Melo, é também um exercício de prazer, ao menos para meu próprio masoquismo. É bom parar, no entanto, antes de começar a falar merda. Aos pudicos de plantão (algum deles chegou até aqui?), devo dizer que essas frases, se vossa excelência as reputar escrachadas demais para seu fino trato, não foram mais que algumas linhas escritas em meio a todas as possibilidades que nossa língua nos dá (e para você que não foi nada pudico/a, a língua pode ser essa que você pensou também). Foram, reconheço agora, bem ao fim, uma homenagem, ao trazer toda a potencialidade do dizer que é bem nosso, que teve sua origem no verbo inaugural do boca do inferno. Isso mesmo, somos todos filhos do baiano Gregório de Matos. Sua palavra está riscada, queiramos ou não, como potência que escreve e descreve nossa história, dotada de uma arte do deboche e da irreverência que jamais apaga a elevação de sua devoção. Seu dizer traçou o destino dessa nossa palavra brasileira – e se a nossa literatura puder dizer, até a puta que pariu, os sempre novos sentidos possíveis do verso de Gregório, seja mesmo para desdizê-lo, talvez haja alguma esperança de lermos nossas letras não como o triste fim de quem se vê evacuado em latrina, a céu aberto, porém como algo digno do amor do povo e da raiva dos santos.
No mais, fala o poeta, "quem diz outra coisa é besta".