Com o coração aniquilado, avancei no novo romance de Márcia Tiburi
Silvio Carneiro
Alguns anos atrás, quando iniciei meus atendimentos na clínica psicanalítica, entrei, pela primeira vez, em contato direto com essa realidade tão presente, tão antiga, tão deplorável e tão silenciada da violência contra a mulher. Para mim, que tive o privilégio de nascer, crescer e ser educado numa casa em que jamais se ouviu meu pai sequer levantar o tom de voz para minha mãe (e vice-versa), a questão da violência limitava-se às manchetes de jornal. Era algo distante. Exemplo em que tentei me espelhar nos meus relacionamentos — nem sempre com o mesmo sucesso do meu velho — e que continuo tentando... Mas, de repente, eu estava ali, no alto de minha poltrona-pedestal de analista, ouvindo as histórias mais cruéis de mulheres que sofreram abusos os mais diversos desde tenra idade.
Eu ouvia tudo em silêncio, na tentativa de acolher aquelas dores, mas era impossível dizer alguma coisa. A cada relato eu me sentia envergonhado de ser homem e de fazer parte disso tudo. Sim, porque, ainda que eu, meu pai ou até mesmo você, leitor
hétero-sis, jamais tenhamos agredido uma mulher, todos os homens, direta ou indiretamente, sebeneficiam com o jogo perverso (e pervertido) do patriarcado: Quando eu acordo para trabalhar e a minha mulher, que também acorda para trabalhar fora de casa, já acordou mais cedo e preparou a mesa para tomarmos um delicioso café-da-manhã, eu estou me beneficiando do patriarcado; quando eu abro minha gaveta e vejo minhas cuecas limpas, cheirosas e cuidadosamente dobradas pela minha mulher (ou até mesmo pela empregada que não tem tempo, muitas vezes, de cuidar da própria casa), eu estou me beneficiando do patriarcado; quando eu recebo salário maior do que o da minha colega que faz (muitas vezes melhor) a mesma coisa que eu na empresa, eu estou me beneficiando do patriarcado; quando, na hora do almoço eu sento para comer aquela refeição no capricho (ainda que seja numa marmita) e fico sossegado porque sei que não vou morrer amarelo de tanto comer miojo, pois minha mulher fez a minha comidinha, eu estou me beneficiando do patriarcado; quando, nesse calor desgraçado de Macapá, eu posso andar livremente na rua sem camisa sem atentar contra "o pudor" da sociedade, eu estou me beneficiando do patriarcado; e por aí vai...
Quando Márcia Tiburi escreveu "Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve", seu sétimo romance, a intenção era mostrar da forma mais crua possível a violência cotidiana sofrida pelas mulheres, independente da época e do lugar onde (sobre)vivem. A violência do Estado, a violência do trabalho, a violência da religião, a violência da família e das tradições, a violência do campo, a violência da cidade. Em todos os contextos possíveis, mulheres sofrem; mulheres morrem.
A Helena de Márcia é mais uma vítima de violências (atenção aqui para o plural). Só que, mesmo sem se dar conta, em seu silêncio absoluto vai se tornando uma heroína. Muitas vezes, sem entender seu destino, Helena avança.
Diante do realismo cruel da violência contra a mulher, Márcia opta pelo realismo mágico. Tudo neste livro é simbólico, mas ao mesmo tempo, é de uma realidade, muitas vezes, comovente, dolorida, incômoda, brutal. A história se passa em tempos diferentes. Histórias correm em paralelo até se cruzarem algum dia, em algum lugar. Cada personagem é fundamental na história. Toda a violência é necessária para a construção da narrativa. A história tem som, imagem, cheiro, é táctil. O ritmo é frenético, dramático. A mensagem é clara, chega a ser didática. Talvez porque, como uma das personagens diz, "a arte, seja pintura ou poesia, ajuda a suportar o horror da vida, mas também porque sendo feita a partir do horror da vida a arte traz uma sabedoria que não se encontra nos jornais ou na publicidade que se torna a cada dia o texto oficial do mundo".
Já vi Márcia dizer em entrevistas que este é um livro para mulheres. Que é um livro incômodo para homens. Não sei se concordo. Claro que é um livro para mulheres. Mas penso que é um livro muito mais necessário para homens. Se a história causar incômodo, paciência, é um preço pequeno demais para uma reparação histórica. Eu recomendo o livro para todas, para todos (ou para todes)... Mas, especialmente para os homens, eu desejo ardentemente que leiam e que avancem até o fim da leitura não com os sapatos mas, como eu, com os corações e a falsa moral aniquilados.