Um conto feito de água
Dizem que ali pros lados de Ipiaçú, passando a Ponta do Pau Cavado, tem uma história de encantamento tão atroz que alma nenhuma se atreve a pular n’água na boca do rio, onde o tal sortilégio se deu.
Zé Simão, moço forte, carrancudo, dado a pescar e nadar sozinho pela vastidão dessas águas de meu Deus, nunca que se abria em risada, nem se fazia parceria nas bebedeiras das festas de santo; era o primogênito de seu Jerino e dona Albina. Esse presta! — diziam as beatas.
Zé carregava e descarregava as embarcações que chegavam; a maioria atracava na comunidade pra reabastecer os mantimentos na venda do seu Jerino, único comércio daquele lado da baía.
Nunca se ouviu falar de briga naquelas paragens, nem algazarra ou aflição que fosse; Ipiaçú era vila-sossego: grande baía à frente, rio Manso à direita e, à esquerda, suas doze casinhas de tábua e palha em linha reta, costuradas por uma ponte alta e comprida; todas protegidas das lançantes que em outros tempos destruíram a vila antiga.
Zé Simão nunca vira furdunço no coração, nem nas idas à cidade, até o dia que o novo comissário de polícia aportou no trapiche, trazendo a família para ali se assentar.
Seu Jerino, já avistando a embarcação que a maré cheia trazia rápido pra beira, gritou pro Zé arrumar logo as tábuas do desembarque — Fica esperando lá que eu vou fechar a venda e já chego!
Caía a noite quando o barco foi amarrado aos esteios do trapiche e se ouvia por toda a comunidade os gritos cerimoniais de quem chega e quem recebe — Aoouu! Eouu! — e davam-se a gritar uns para os outros numa calorosa saudação, como uivos felizes entre lobos da mesma alcateia.
Zé arrumou as tábuas grossas de acapu entre o trapiche e o barco, e desembarcaram seu Antero, a esposa dona Cecília, duas filhas moças aparentando a mesma idade e um menino de colo ainda.
Antes que todos desembarcassem, Zé pulou pra cima da embarcação e começou a descarregar a bagagem, muitas caixas e malas, além de tábuas e um gerador maior para Ipiaçú.
Quando Zé desceu do barco e saltou da proa para o trapiche com malas nas mãos, olhou para os recém-chegados, parou de golpe e sentiu retumbar na fronte um grito mudo; já não era mais o mesmo ali, já não se conhecia. O rio, o barco, a vila, o trapiche… Nada mais cabia no mundo que agora via!
Seu Jerino, caboclo muito vivido, percebendo a súbita pasmaceira do filho, arrancou as malas das mãos de Zé Simão e ordenou que esse fosse ligar o gerador, pois a noite caía com força aquela hora.
Ninguém desconfiou do que sucedera ali, na beira do rio que trouxe desassossego para Ipiaçú.
Zé botou-se a andar disparado na ponte, ligou o gerador e se fez luz na vila, menos em seu coração, que agora era um sem-fim de inquietação: nunca mais esqueceria aquele rio amarronzado dos olhos de Cecília!
Ao voltar para o trapiche, todos já tinham ido; seu Jerino levou o doutor e família até a casa nova, a primeira do lado direito, encostada no rio Manso, onde a molecada passava horas a fio.
Zé pôs-se a olhar a casa de longe, todos os dias, às vezes de canto de olho, até Cecília aparecer; e quando ela vinha à porta da escola receber os alunos, lá estava ele, entregando o irmão mais novo, coisa jamais vista. O bom-dia de dona Cecília era alimento para o dia de trabalho e bálsamo para o descanso da lida.
Aquela simpatia trocada ficou transparente demais; as beatas cochichavam na saída da capela — Já não presta mais!
Seu Jerino ameaçou uma surra, dona Albina chorava e fazia promessa pra São Benedito, padroeiro daquele povoado — O doutor vai matar meu filho, meu santo! — Aos prantos benzia o filho, mas que remédio há pra mal de amor, desses que fazem a gente nem saber mais quem foi um dia?
Seu Antero vivia a percorrer ilhas afora e adentro; o mato é grande pra um só dar conta de tanta coisa ruim que o homem apronta. Voltou pra casa um fim de semana e sentiu o povo baixar o olho quando o via. Indagou dona Cecília, mas nada ouviu. Mandou chamar seu Jerino; o revólver em cima da mesa.
Zé, subindo de uma pescaria pelo lado do rio Manso, viu o moleque sair às carreiras pra fazer o mandado e o segurou pelo braço — Dotô tá muito brabo e mandou chamar teu pai, Zé!
Não deu tempo de chamar ninguém! Ali era uma calmaria, tudo se ouvia, tudo corria ligeiro; seu Antero saiu da casa, encontrou Zé na ponte, com a malhadeira nas costas — Mandei chamar teu pai, mas pode ser tu mesmo!
Era hora da novena. Seu Jerino chegou antes da resposta do Zé; as beatas saíram da capela — Valha-me, Deus!
O povo no trapiche parou, espantado!
Seu Antero, correndo com os olhos aquela gente abismada, se deu conta da afronta, do peso da traição — Cecilia! — gritou uma vez e, antes que gritasse a segunda, Cecília saiu da casa com o menino no colo e as duas mocinhas agarradas à saia.
Seu Antero sacou do revólver preso na cintura, apontou para Zé Simão, mas Cecília, antevendo a morte injusta do moço, largou os filhos na ponte e atirou-se sobre o marido.
Um disparo! José Simão caiu de joelhos!
Os homens da vila pularam sobre seu Antero; Cecília, enternecida, virou-se para Zé que levantou, deu poucos passos até a beira do rio Manso e deixou-se cair n’água; só então o povo se deu conta que ele não estava mais lá.
Correram para a beira, Zé ia longe, na boca do rio; pularam atrás, os melhores nadadores da vila, dia após dia, mas ninguém mais achou o Zé Simão!
No sétimo dia, formou-se um enorme ajuntamento de mururé e canarana na boca do rio Manso; uma ilha flutuante que enrosca nos remos, nas hélices dos barcos e em quem ainda queira nadar ali; e não há quem faça aquilo acabar.
Dizem que é o Zé encantado, que nunca mais deixou ninguém passar, nem nadar naquele rio. Se é verdade eu não sei, nunca mais voltei a Ipiaçú pra comprovar.