A literatura, ao longo dos séculos, tem sido um espaço vital para a expressão das mais diversas identidades e experiências humanas. No contexto brasileiro, a literatura queer emergiu como uma voz poderosa, desafiando normas sociais e promovendo a visibilidade e a aceitação das comunidades LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais e outras identidades não conformes). Mas quem pensa que esse caminho é cheio de cores, como a bandeira do movimento, engana-se. Preconceito e censura é o que não falta até os dias de hoje. Recentemente, vimos o caso do excelente livro Outono de carne estranha (Record; 2023), de Airton Souza, receber uma censura severa e ataques de puro preconceito após vencer o Prêmio Sesc de Literatura na categoria melhor romance — censura e preconceito que partiram da própria diretoria nacional da instituição! —
e tudo isso pelo simples fato do livro narrar a história de dois garimpeiros que vivem uma relação homoafetiva na Serra Pelada dos anos 80 — e, detalhe, Airton não é um escritor gay, nem militante de causa nenhuma e o livro não pode ser considerado um “livro gay” (se é que podemos rotular qualquer livro dessa maneira), pois o foco principal da narrativa é um momento histórico que impactou a vida dos moradores do sudeste do Pará em todos os aspectos.
Como defensora da total liberdade de expressão e sempre preocupada em dar voz e visibilidade à diversidade na literatura, a Revista Literária O Zezeu traz esta matéria especial para celebrar o Dia Nacional do Orgulho Gay (25 de março) e destaca os principais livros e autores da atualidade que precisam ter seus trabalhos (re)conhecidos.
A história da literatura queer no Brasil remonta a séculos atrás, embora muitas vezes tenha sido marginalizada ou silenciada. Durante o período colonial, por exemplo, encontramos registros de relações homoafetivas entre indígenas e colonizadores, muitas vezes documentadas em relatos de viajantes europeus. No entanto, foi somente no século XX que a literatura queer começou a florescer de maneira mais proeminente, à medida que movimentos sociais e culturais ganhavam força.
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Na década de 1970, com o advento do movimento de liberação gay no Brasil, surgiram as primeiras obras literárias que abordavam abertamente questões relacionadas à sexualidade e identidade de gênero. Autores como Caio Fernando Abreu e João Silvério Trevisan foram pioneiros nesse sentido, trazendo para a cena literária nacional narrativas que desafiavam as normas heteronormativas predominantes.
Nos anos seguintes, a literatura queer continuou a se expandir e diversificar, com autores e autoras de diversas origens e perspectivas contribuindo para o enriquecimento desse cenário.
No contexto do Amapá, destacam-se figuras como a poeta e militante lésbica Adna Selvage, conhecida como Poeta Inflamada, cuja poesia incendiária e comprometida com a visibilidade LGBTQIAPN+ tem inspirado e empoderado muitas pessoas.
Em entrevista ao Zezeu em dezembro do ano passado [confira aqui], Adna fala sobre como tenta conciliar literatura e ativismo: "Eu entendi que, só por eu ser mulher, já sou um corpo político. Então tudo é sempre muito junto. Continuar lutando pra existir num sistema machista, misógino, que não foi feito pra pessoas como eu. Decidi trabalhar por conta própria (sem ser CLT) por questões de saúde mental. E decidi lançar um livro falando sobre amor entre mulheres num momento em que, mais uma vez, os nossos direitos estão sendo tirados. Tentar não enlouquecer ou sucumbir
de depressão. Há tanta violência e desigualdade! É uma luta diária. E tem vezes que eu só não consigo levantar. Porque uma coisa está sustentando a outra e tem vezes que eu só não consigo lidar e conciliar. Então eu só tiro aquele tempo pra eu sentir tudo que eu preciso; pra poder respirar e depois continuar lutando. Porque, infelizmente, é uma batalha sem fim e o que eu tento fazer hoje é, pelo menos, deixar esse caminho mais leve e com o máximo de ferramentas possíveis pra próxima geração sofrer menos."
Outro destaque são Pedro Stkls e Thiago Soeiro, o casal por trás da dupla performática Poetas Azuis. Com sua poesia vibrante e performances impactantes, eles desafiam as fronteiras entre arte e ativismo, levando suas mensagens de amor e resistência a diferentes públicos pelo país afora.
Pedro nos fala da a importância da diversidade na literatura, principalmente aqui no Amapá, um estado ainda tão isolado geográfica e culturalmente:
"Nós enquanto poetas, acreditamos que o poema é um lugar para se pensar, para se debater, para discutir coisas. Acho que vai muito além dessa coisa de você apenas tratar do amor, da saudade. Acho que a gente tem que falar da dor em todos os seus aspectos, tudo aquilo que de verdade faz com que a gente sinta mesmo que é real e que faz parte, assim como o amor é muito real, a saudade é muito real, mas tem essa realidade que nos dói muito mais profundamente, em que muitos casos, a gente já viu aí, que levou até a morte de pessoas. É muito importante a gente fazer com que a poesia, a literatura, seja esse canal que sirva como denúncia, que sirva como reflexão para a gente”, reflete Pedro.
O poeta também fala um pouco sobre o entrelaçamento entre a vida e a arte: “Nosso trabalho de poetas às vezes está pautado nisso também. Thiago e eu, nós não fizemos questão de esconder que somos um casal, além de ser uma dupla de poetas em cima de um palco. Quem conhece a gente sabe que a gente troca feto em cima do palco, que no nosso dia a dia a gente sempre está postando coisas sobre a nossa vida e que a gente também faz com que essas postagens estejam muito ligadas no nosso canal pessoal. Então é uma mistura de um pouco de tudo isso. E quando nós somos chamados para falarmos sobre isso, para a gente se torna muito gratificante e honroso saber que isso também está sendo reconhecido, porque a gente em nenhum momento quis se esconder, quis se eximir de estar lutando pela causa, pela bandeira. O que a gente sempre quis é fazer com que fôssemos vistos pelo que somos. Eu acho que isso é que torna o trabalho interessante também. E é importante para que outras pessoas reconheçam, para que a gente seja visto como somos de fato. Eu acho que esse é o caminho certo a se seguir”, conclui.
Devassos no Paraíso (4ª edição, revista e ampliada) - A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade
João Silvério Trevisan (Autor)
Num frutífero diálogo com diversos campos de conhecimento e expressões de nossa cultura — cinema, teatro, política, história, medicina, psicologia, direito, literatura, artes plásticas etc. —, João Silvério Trevisan realiza um estudo pioneiro sobre a homoafetividade no Brasil. Considerado uma referência, Devassos no Paraíso atravessou gerações, provocou intensa interlocução com a comunidade LGBT e influenciou desde ações emancipatórias até pesquisas sobre gênero e sexualidade.
Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias
Renan Quinalha (Autor)
Em tempos de autoritarismos e conservadorismos morais, nada como a história para nos ensinar e inspirar nas resistências do presente. Sistematizando anos de estudos e elaborações em torno da temática da diversidade sexual e de gênero, Renan Quinalha compartilha neste livro reflexões teóricas e historiográficas em linguagem acessível, sem renunciar à profundidade das discussões, com o objetivo de atingir um público mais amplo interessado no universo LGBTI+. Esta obra destina-se tanto a pessoas que desejam investigar a fundo essa temática como àquelas que estão dando seus primeiros passos nos estudos de gênero e sexualidade. Ela é, sobretudo, um convite à ação política e à luta por igualdade, diversidade e democracia.