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Entre o feminino e o masculino, o gênio

Luíz Horácio

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Literatura feminina, Literatura feminista. Do que estamos falando? Sei muito bem o que é uma o que deve ser a outra. Conceitualmente. Na prática isso vale quase nada. Não desfaço de nenhuma, mas no campo da Literatura de ficção não querem dizer nada. O que importa é literatura de qualidade, o gênero criador pouco importa. No mundo literário, desnecessário grandes pesquisas, encontramos notáveis e deploráveis autoras e notáveis e deploráveis autores. O que merece minha atenção é a produção desse contingente.

A Literatura deve ser valorizada independente de quem a produz, num universo machista literatura produzida por não macho já nasce, quando nasce, em déficit e com alto teor de desconfiança. Mas esta é uma questão filosófica/antropológica, passemos ao próximo tópico: Ao estudarmos a história do romance podemos voltar nossa atenção à infinidade de narrativas que se ocuparam em satisfazer a curiosidade dos homens. Entre tantas obras percebe-se a diferença que mais impressiona; aquela que confronta as narrativas que descrevem uma humanidade idealizada e outras que tomam como objeto a imperfeição humana. Desloco a análise para o âmbito da literatura francesa e destaco como exemplo da primeira opção Julie ou la Nouvelle Héloïse, de Rousseau, a segunda por Jacques le Fataliste et son maître, de Diderot. Encontramos em Rousseau seres sublimes, sinceros, bondosos, dotados de espírito de sacrifício; em Diderot deparamo-nos com personagens alheios, frívolos, incompetentes, vingativos e desleais. O romance de Rousseau se inscreve numa tradição cujos ancestrais são Les Éthiopiques, de Heliodoro, nessa obra identificam-se aspectos do Cristianismo. Por sua vez, Jacques le Fataliste et son maître descende de uma linhagem ainda mais antiga, entre seus membros encontra-se Satyricom, de Petrônio, os romances picarescos e, um pouco antes da obra de Diderot, Tristham Shandy, de Laurence Sterne.

Com esses exemplos percebemos que os escritores daquela época não dialogavam com seus antecessores, apesar de Rousseau ser contemporâneo, por exemplo de Richardson, e Diderot, de Sterne. Nesse mesmo período grandes escritores foram incompreendidos ou até mesmo esquecidos durante séculos. Em virtude disso, muitos foram exercer sua influência bem mais tarde e num período cultural completamente diferente. Les Éthiopiques foram redescobertos muitos séculos após sua publicação e somente na metade do século XVIII percebeu-se em Don Quichotte, de Cervantes, algo além de uma simpática paródia dos romances de cavalaria. A obra de Rabelais atingiu seu posto no panteão literário apenas no século XIX.

A literatura francesa do século XVI, considerada em seu conjunto, deixa antes de tudo a impressão de um prodigioso desenvolvimento, de uma variedade e uma riqueza espantosas: a riqueza e a variedade da vida que nunca se repete. Pois essa literatura é, em primeiro lugar, um hino à vida, e dá à palavra Renascença sua mais bela e mais profunda significação, encontramos aqui o naturalismo de Rabelais, o epicurismo de Ronsard, o animismo de Agrippa.

A Renascença tem em seu início uma enorme vontade de saber e um otimismo completamente avesso às normas da época. Marca definitivamente a literatura francesa orientando-a no sentido das humanidades greco-latinas. Pouco afeito a limites, Rabelais entende que é necessário liberar o corpo e o espírito das imposições da Idade Média, confiando na Natureza a fim de permitir o florescimento de uma aurora onde o progresso será ilimitado. O gigantismo presente na obra de Rabelais define um valor simbólico: a humanidade conforme ele a concebe é verdadeiramente gigante.

Em 1532, Rabelais, com 38 anos, publicou em Lyon Les horribles et espoventables faictz et prouesses du très renommé Pantagruel Roy des Dipsodes, filz du Grand Géant Gargantua, composez nouvellement par maistre Alcofribas Nasier (1532).

Tão logo retornou de sua primeira viagem à Itália (1534), Rabelais publica La vie très horrifique du grand Gargantua, père de Pantagruel.

A partir deste ponto as observações se concentram na obra de François Rabelais, mais precisamente acerca do teor de Gargantua.

O objetivo de Gargantua é bastante claro: Infância e estudos do gigante beberrão; suas proezas durante a guerra Picrocholine; recompensas aos vencedores e descrição de Thélème.

A narrativa ultrapassa os limites daquilo que podemos perceber numa leitura apressada; o gigantesco maravilhoso, a leitura atenta levará o leitor a perceber que o realismo dos costumes está em primeiro plano: o cenário da ação é Paris, no meio estudantil, ou em pleno Chinonais, um mundo de camponeses e de monges bastante familiar a Rabelais. A história de Gargantua está repleta de lembranças pessoais e alusões aos pequenos acontecimentos da história local.

Algumas considerações e críticas concorreram para o estigma da obra de Rabelais. O conceito do carnavalesco, incansavelmente apontado por Bakhtin, contrasta a inversão das hierarquias sociais e ridiculariza as autoridades, o fato ocorre exatamente no período de carnaval. Mais do que a liberdade, Bakhtin enfatiza o enfrentamento das regras sociais, a irreverência com que o sagrado é referido nessa época. O que me parece uma simplória abordagem, enquanto a diversidade de vozes em seus mais variados níveis sociais merece menor atenção. Ao conceito do carnavalesco oponho os conceitos de liberdade e criatividade, esta representada por toda inventividade contida em sua obra, do aspecto fabular às inovações da língua francesa, aquela pela coragem de denunciar a mediocridade, política, social, religiosa; que em última instância vitimiza o povo.

Outro ponto bastante mais interessante do que o carnavalesco diz respeito à admiração de Rabelais por Platão e Sócrates, inúmeras vezes, como se pode constatar já no prólogo de Gargantua, são citados e em algumas com a malícia característica.

Bebedores ilustríssimos, e vós, preciosíssimos bexiguentos - pois a vós e não a outros dedico meus escritos -, Alcibíades, em um diálogo de Platão intitulado O Banquete, glorificando seu preceptor Sócrates, sem contestação o príncipe dos filósofos, declara, entre outras coisas, ser semelhante aos Silènes (RABELAIS, 2019, p. 5).

Platão é o autor citado com maior frequência, Sócrates é personagem recorrente, Rabelais jamais negou sua admiração, tanto que Gargantua recomenda a leitura a seu filho.

Por isso, meu filho, advirto-te para que empregues tua juventude à bem de aproveitá-la a teus estudos. Estás em Paris, tens o teu preceptor Épistémon: um pode te dar a doutrina através de suas vivas e vocais instruções, o outro por meio dos exemplos louváveis. Espero que tu aprendas as línguas perfeitamente: primeiramente o grego, como quer Quintilien; depois o latim, a seguir o hebraico para as Escrituras santas, o mesmo para o caldaico e o árabe. E que tu formes o teu estilo, para o grego à imitação de Platão, para o latim, de Cícero (RABELAIS, 2011, p. 91).

A lista de exemplos é exaustiva, no entanto destaco ainda, ao longo da obra, citações de Plutarco, Cícero, entre outros; bem como Erasmo, evidentemente. Homero, a quem Rabelais chamou de “pai da Filosofia” também mereceu sua desaprovação por ter escrito na Ilíada que os bons príncipes e os grandes reis eram os “harmonizadores do povo”.

Et à ce propous nous alleguant l`auctorité de Homerem pere de toute Philosophie, qui dict les Gregeoys lors, non plus tost, avoir mis à leurs larmes fin du dueil de Patroclus le grand amt de Achilles, quand le faim se declaira et leurs ventres protesterent plus de larmes ne les fournir (RABELAIS, 1993, p. 97).

Outro tema a ser analisado antes do aspecto carnavalesco diz respeito à presença da mitologia na obra de François Rabelais, apesar da interpretação socialista de Mikhail Bakhtin segundo a qual os heróis de Rabelais encarnam o espírito do povo europeu contra a opressão das elites, e, sobretudo, da Igreja. Essa interpretação retrata um povo que se revolta fazendo uso do humor numa época pela via política, isso seria impossível.

Mas no que concerne à mitologia, grega e latina os exemplos são bastante evidentes, as citações dos autores clássicos; no entanto o que diz respeito aos gigantes – aspecto mais conhecido na obra de Rabelais – estimulam alguns debates.

No séc. XIX a Europa se interessava pelo folclore de forma bastante acentuada e teve início uma pesquisa acerca de histórias orais, de uma cultura pré-romana e as buscas ocorreram pelas campagnes françaises. Os camponeses de várias regiões compartilharam lendas populares concernentes a interferência de gigantes na topografia e, sobretudo, as proezas de um certo Gargantua. Na opinião de alguns pesquisadores Rabelais explorou uma eterna tradição do povo francês, livre de toda influência estrangeira, de onde também extraiu o nome de seu herói.

A cultura escrita medieval não era pródiga em gigantes bondosos, a exceção seria saint Christophe que se tornou afável e sábio somente após sua conversão efetuada por Jesus Cristo (La Légende dorée). Os outros gigantes medievais, Bíblia, romances de cavalaria, dos livros de história e da mitologia, eram até então criaturas assustadoras. Não foi com intenção de parecer engraçado que Rabelais utiliza esse termo no título de Pantagruel. Até 1500 se desconhecia gigante que fosse sábio ou cristão. Nesse período eram utilizados para simbolizar a natureza por excelência, significavam o oposto da civilização: selvagens, hostis aos seres humanos, canibais e desconheciam Deus ou se mostravam revoltados contra sua autoridade.

O bom gigante, característica da obra rabelaisiana, aparece em 1532, data da publicação de Pantagruel.

Gigante portando essa característica, como podemos ver, não nasceu da imaginação de Rabelais, sua origem é a cultura popular, seres, assim como o autor, preocupados com a própria felicidade e a dos outros. Essa preocupação com o bem-estar do outro talvez seja uma das mais importantes lições de Rabelais.

Embora o carnaval suscite liberdade, trata-se de uma liberdade com prazo determinado, Rabelais preconiza a preservação dessa liberdade mesmo após a quarta-feira de cinzas.

A liberdade é marcante ao longo da obra. A seguir um exemplo, cap. LV Como os Thélémites ajustaram sua maneira de viver:

Toda sua vida foi organizada não de acordo com as leis, os estatutos ou as regras, mas segundo sua vontade e seu livre arbítrio. Levantam-se quando queriam, bebiam, comiam, trabalhavam, e dormiam quando assim o desejavam. Ninguém os acordava, ninguém os obrigava a beber, a comer, nem a fazer o que quer que seja. Assim decidira Gargantua. Para cada regra, ele tinha esta cláusula, Faça o que quiser porque as pessoas livres, bem nascidas e bem educadas, vivendo em boa companhia, têm por natureza um instinto, uma ambição que as empurra sempre para a virtude e as afasta do vício, que chamam de honra (RABELAIS, 2019, p. 121).

Apontado esse importante ideal de total liberdade na obra de Rabelais, a utopia também merece igual atenção. Rabelais fez uso da Utopia, obra de Thomas More que apregoa uma sociedade perfeita; por sinal amigo de Erasmo, importante observar.

No início de Le Tiers Livre temos Comment Pantagruel transporta une colonie d’Utopiens en Dipsodie:  

Pantagruel conquistara inteiramente o país de Dipsodie, a seguir transportou para lá uma colônia de Utopiens, em número de 9.876.543.210, sem contar as mulheres e as crianças, artesãos de variados ofícios, e professores de todas ciências liberais: para reconstruir o país, povoar e ornar de outra maneira, até então pouco habitado e deserto em grande parte (RABELAIS, 1993, p. 47)

Ainda no Tiers Livre, Rabelais faz referência a obra O Príncipe, de Maquiavel, creio ter elencado motivos mais que suficientes para demonstrar um pouco de sua erudição, de sua preocupação com a justiça, pelas classes populares etc., e por esses motivos não transcrevo aqui a passagem acima referida.

Apesar de todas tentativas reducionistas no sentido de apresentar a obra de Rabelais como representante de um humorismo ácido prefiro entendê-lo como um gênio de todos os tempos. Várias vezes condenado, igreja, justiça, Sorbonne; Rabelais viveu sobressaltado. A tensão é componente da genialidade, o gênio vive sob tensão, e quando esta se torna insuportável ele a transfere para sua obra. Sabemos que a sociedade tem, como uma de suas funções, alterar a imagem que o homem tem de seu semelhante e da humanidade. Desvirtuando o essencial provoca sempre a rebelião de toda sensibilidade artística, porque a sensibilidade influencia o espírito do criador, do artista, como a cristalização de uma ferida, e o artista se rebela sempre em nome de uma concepção individual de mundo para fazer frente ao conceito gregário da sociedade. Rabelais vivia em permanente estado de beligerância intelectual pronto a defender seus pontos de vista, seus valores, e atacar seus adversários. Lembro que o conceito latino de gênio se identifica com a palavra grega daimon, demônio. Permite dizer que o genial é como um grito saído do interior de alguém com a finalidade de estimular a fazer coisas que os demais homens não fazem e jamais farão. Podemos chamar a isso de daimon. E ao falar de Rabelais, logo penso em Sócrates. Quando o filósofo fala de seu demônio alude a uma misteriosa voz interior semelhante ao que atualmente entendemos por consciência. Sócrates vai mais longe: diz que seu demônio o havia posto em estado de alerta desde a infância para que não tomasse decisões equivocadas.

Estabelecidas as diferenças entre realidade e mito, sabemos também que o caráter é o legítimo demônio interior de um homem. Caráter que levou Rabelais a correr riscos devido a sua espontaneidade, seu temperamento criador e provocador, ao revitalizar lendas populares, a combater as injustiças.

Inúmeros aspectos antecedem, e sobressaem em importância, a abordagem carnavalesca, mesmo que esta seja uma manifestação popular.

No prólogo Rabelais alerta para as diversas questões sérias; aborda o problema da educação, irônico ao tratar da guerra e dos conquistadores, ataca impiedosamente os teólogos da Sorbonne, a preguiça dos monges e as superstições religiosas. Além disso faz proselitismo do retorno à pura doutrina evangélica.

As personagens de Rabelais são alegres, dotadas de um ceticismo, bem-humoradas, otimistas arrisco dizer, refletem o autor, escritor pouco afeito aos modelos e às regras. Acredito que as características do homem a partir do séc. XX, um ser atormentado, triste, constantemente sobressaltado e perigosamente refém das regras do mercado (consumo), colaborem para rotular Rabelais como um autor eminentemente cômico. Trata-se de uma qualificação simplista da qual discordo veementemente. Desempenhou o papel de médico e como tal deparou-se com a miséria e o sofrimento humano, mesmo assim o leitor não encontrará desalento nas páginas de Gargantua. Como um médico fiel ao juramento de Hipócrates Rabelais busca a cura através do riso.

Melhor de risos que de prantos escrever / Porque rir é próprio do homem.

VIVEI ALEGRE” (RABELAIS, 2019, p. 2

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