A dor que não dói
Imagem inicial enquanto aparecem os créditos: Cadeira de balanço, um carrinho de madeira em cima. A cadeira balança.
Velha sentada em frente à casa. Está usando um longo vestido branco com detalhes em azul até a cintura. Um pouco afastado, mas ao alcance dos fracos olhos da velha, um menino brinca com um sapo. Ele veste bermuda, camisa de mangas curtas e chinelos. Embora a fragilidade da voz, o menino atende o chamado. O sapo se afasta em sua sina de sapo.
-O que foi, mãe?
-Senta...aqui...mais perto.
O menino aproxima sua cadeira, a velha, com mão trêmula, acaricia primeiro as mãos, depois rosto e cabelos do menino.
-Mãe, o...
-O quê?
-O sapo.
-Não, meu filho, não tem mais lagarto no sítio, isso é coisa de antigamente.
O menino aproxima os lábios, joga para trás os cabelos da velha, deixando livre o ouvido direito.
-O sapo, mãe, o sapo.
-O que tem o sapo?
-Se foi
-Um sapo-cururu? Ele há de voltar, meu filho. Sim, há de voltar. Todos voltam, menos meu sobrinho, ele está atrasado....
Ao longe um homem capina junto à cerca do sítio, retira o chapéu, se apóia no cabo da enxada e assim permanece por longo tempo. Olha na direção da velha e do menino. Muda o olhar apenas quando um pássaro cruza o sítio em pleno voo.
A velha, com dificuldade, mas recusando a ajuda do menino, levanta.
-Mãe, por que me chamou?
-Chamei? Chamei não. Por que você veio?
Estende a mão em direção ao menino.
-Venha.
Ela descalça os chinelos, pisa na grama, o menino também retira os chinelos.
-Mãe... os espinhos...
-Ninhos... mas que ninhos? Os quero-queros nunca fizeram ninhos aqui, perto da casa, não se preocupe com isso. E de mais a mais, os pássaros sabem se defender. Saberão se defender desses pés velhos. Preste atenção, você precisa saber: coisa que todo bicho já nasce sabendo é se esconder, gente nasce sabendo enganar. Mas pense só nos bichos... Agora quero que veja uma coisa. Olhe.
A velha aponta para uma cerca de pedras, longa cerca, à direita da velha percebe-se algo que se assemelha a uma proa de navio. Está coberta de vegetação.
-O quê, mãe?
-O navio.
-Navio?
-Sim, vazio. Agora está vazio, mas o finado meu marido construiu para vê-lo cheio de gente. Ele queria levar todo mundo aqui de perto pra uma viagem pelos mares. Sabe, meu filho, só no mar se pode ver Deus. O mar tem coisas que não se consegue explicar. Venha, vamos voltar, estou cansada.
O sol está se pondo, o homem, carregando pá e enxada, passa em frente a velha e o menino. Olha para o menino, não sorri.
Lentamente a velha volta a sentar.
-Mãe, o finado queria matar todo mundo?
-Quem é imundo, meu filho, quem?
O menino aproxima seus lábios do ouvido da velha.
-O finado queria matar todo mundo?
-Não...não...mas de jeito nenhum...de onde você tirou isso?
-Ué, pra ver Deus não precisa morrer? A mãe disse que o melhor lugar pra se ver Deus é o mar. E parece que Deus só se mostra aos mortos. Eu não gosto de falar em Deus, me dá medo. Hoje, lá na escola, a professora falou em Deus por um tempão. Com Deus nada é agora, não é mãe? A gente precisa obedecer pai, mãe, professora, não dizer palavrão, aí se Deus achar que você fez tudo certinho, pronto, ferrou: você morre. Mas antes da morte tem o sofrimento. Onde tem Deus, tem morte, isso é certo. Não quero saber de Deus...não preciso de Deus. Pra quê Deus, (abraçando a velha) tenho a minha mãe. Acho que a gente só deveria falar sobre aquilo que se pode ver. Falar em Deus é como falar sobre o ar. Às vezes, dependendo do tempo e da vontade do vento, até vem um cheirinho, do contrário....do contrário...não é nada, nada. Ninguém precisa do nada. Olha as garças, mãe, olha...assim, com elas, o ar fica bonito.
- Ele não era de se atrasar, mas...Acho que você não terá minha companhia por muito tempo, mas não tenha medo, meu sobrinho está a caminho. Vamos entrar, vou fazer a comida. Antes vá tomar seu banho.
O garoto sempre falando próximo ao ouvido da velha.
-Se não vai ficar muito tempo comigo, então encontrará Deus. Não quero saber de quem só se importa com quem já morreu. Posso ir até o lago ver se encontro o sapo?
-De noite os sapos estão ocupados, menino, muito ocupados. Melhor deixar para amanhã, depois da escola.
O menino não contesta, se encaminha ao seu quarto. Sai de lá carregando roupas limpas e toalha. Rumo ao banheiro. A velha vai para a cozinha, começa a descascar batatas. O homem surdo/mudo bate à porta da cozinha, entra, senta e enrola um cigarro de palha.
Com gestos, pergunta pelo menino, a velha, também com gestos, informa que está tomando banho.
O olhar do homem examina cada canto da cozinha. Lentamente a velha destrincha uma galinha.Tempera. Fala consigo mesma.
-Esta vou fazer com molho. Purê de batatas, couve e arroz. Ainda tem feijão do meio-dia.
O menino entra na cozinha.
-Quem é essa criança? (a velha pergunta ao homem). Sem esperar resposta segue a descascar batatas.
O menino senta-se próximo ao homem surdo/mudo. Trocam olhares demorados. O homem toca a perna direita do menino, com gestos diz:
-Eu sei onde aquele sapo vive.
O menino e o homem se comunicam utilizando a linguagem dos sinais.
O homem diz que no dia seguinte, quando o menino retornar da escola, mostrará onde vive aquele e outros sapos. É preciso cuidado, ele avisa, pois garças andam rondando o lugar.
O menino diz que tem muita garça naquele banhado, e justifica por que não gosta muito de garças porque se trata de bicho muito silencioso. Servem apenas para enfeitar o vento.
O homem lança um demorado olhar, triste, uma lágrima escorre. O menino pergunta o que aconteceu e o homem responde: “Então você não gosta de mim.” O menino diz que gosta, gosta muito e que não se deve comparar gente e bicho.
Sorrisos e o menino abraça o homem. A velha serve os pratos. Comem em silêncio.
Amanhecer, menino entra numa van em frente ao sítio, vai pra escola. Velha passa roupa, o homem sentado em frente a sua casa, fita o horizonte, em seguida tenta enfiar linha numa agulha, a seguir prega um botão numa camisa.
Garças, muitas garças, voam em frente a casa da velha.
O menino retorna da escola. Desce da van.
Mal chega à casa, a velha o chama.
-O que foi, mãe?
-Sabe, hoje cedo veio uma mulher, disse ser aqui do lado, do sítio ao lado do nosso, veio aqui conversou, conversou e eu não consegui lembrar dela, ela disse o nome, mas quem é?
-Uma senhora alta?
-Essa mesma.
-É a dona Lívia, ela veio aqui anteontem, mãe, vocês tomaram chá aí mesmo onde a senhora está.
-Não é possível...não é possível. Outra coisa que me deixou intrigada, não vi o gato em lugar nenhum hoje pela manhã. Cortei carne bem picadinha, botei ali no lado de fora perto da porta da cozinha, chamei...chamei...não veio.
-Mãe, o Pirata morreu faz mais de dois meses, foi a senhora mesma que enterrou. Lembra, eu ajudei a cavar o buraco... vem que eu mostro.
De mãos dadas com a velha o menino a conduz a um lugar nos fundos da casa. Mostra onde está enterrado o gato. Ainda pode se ver, em lugar da cruz, uma bandeira preta com uma caveira branca.
A velha se demora olhando...olhando
-Não é possível, nós nunca tivemos gato.
O menino olha firme nos olhos da velha, não diz nada e lentamente retornam à casa.
Enquanto isso o homem, na sala de sua casa, olha um álbum de fotografias. Mostra as fotos da criança e da mulher.
A velha e o menino terminam de almoçar, sentam à sombra de uma árvore.
-Mãe, amanhã é dia de ir à cidade buscar seus óculos.
-Mas que cidade, não gosto de cidade, eu sei lá o que é cidade.
-Sabe sim, mãe. Nós fomos juntos no dia da consulta. A senhora conhece muitas cidades, até ao Rio de Janeiro a senhora já foi.
-Bobagem, não conheço nada que não seja este vão (aponta com o braço estendido, direita para esquerda, esquerda para direita) aí. É isso... isso e um tanto de ilusão. Não vou buscar óculos nenhum, o que eu tinha que ver, está visto. Nada mudará. E o Vitor está por chegar.
-E a tv, mãe? A tv que a senhora gosta de olhar?
-Não preciso mais olhar, é tudo igual. Depois de uma certa idade a gente percebe que o que mais as pessoas fazem é se repetir. Não existe surpresa, meu filho. E sem surpresa, cadê a graça? Ainda enxergo bem, dá pra me defender. Não irei à cidade nenhuma buscar óculos. De mais a mais, minha vista precisa se apagar aos poucos. Feito a vida da gente, meu filho.
-Mãe a senhora precisa ir à cidade, retirar dinheiro no banco.
-Pra quê?
-Tem que pagar água, luz, comprar comida, e...
-Mas não se comprou comida dia desses?
-Faz quase um mês que fomos à cidade, mãe.
-Então não tem remédio, peça ao Elias para ir conosco. Nessas horas um homem forte tem lá sua serventia. A que horas passa a condução? Preciso trocar de roupa. Não... assim está bom.
-Mãe, o seu Elias não mora mais aqui, ele foi embora, lembra?
-Mas desde quando? Como que se foi sem se despedir?
-Faz tempo, mãe...faz muito tempo.
A velha arranca algumas folhas da árvore e fica um tempo, em silêncio, a amassá-las. Depois de um tempo abre as mãos e deixa que os pedaços escorram até o chão. Levanta, sempre em silêncio, entra na casa.
O menino anda em direção ao lago, triste.
-Ela precisa assinar um papel lá na escola.
Em sua casa, o homem continua a olhar o álbum, retira a foto de uma mulher e chora.
A velha está em seu quarto, sentada na cama, braços estendidos ao longo do corpo, olhar perdido.
O menino, próximo ao lago, brinca com o sapo.
-Às vezes dá vontade de ser bicho. A mãe está esquecendo de tudo, daqui a pouco nem vai mais saber quem sou eu. Depois de ela ter esquecido tudo, morre. Primeiro esquece tudo, esvazia, aí sim pode morrer. Pior é gente que morre nova, não tem tempo para esquecer. Minha mãe morreu nova. (Falando pro sapo) Eu sei que essa que chamo de mãe não é minha mãe, mas não se pode viver sem chamar alguém de mãe. Minha mãe trabalhava aqui no sítio. Meu pai? Meu pai é o Clemente. Esse mesmo, o que não fala. Como é que eu sei? Ora, como é que eu sei? Garanto que até você sabe quem são seus pais. A mãe vai morrer, sabe? E eu não sei se isso é triste, mas naquela hora que ela falou do gato parece ter passado um vento gelado pelas minhas costas, a solidão. Por falar em solidão, por que os sapos andam sempre sozinhos? Eu estou me sentindo só. Será que dá para ser sozinho sem ser triste? Você só me olha (mostrar o sapo)... só me olha.
Nisso escuta-se uma voz.
-Dá. Solidão é bem diferente de tristeza.
O menino, que estava de cócoras, levanta e surpreso dá de cara com Clemente.
-Você...
-Sim, eu falo, sempre falei. Teve tempo de não falar...já chega!
Enquanto pai e filho conversam, mostrar a velha, agora deitada, mãos sobre o peito. Aparentemente morta.
Da velha deitada passar para imagem de uma garça voando.
-Pai... os óculos da mãe.
-Não se preocupe.
-Ela vai morrer, pai, eu sei. E nós, como vai ser... o sítio?
-Preste atenção... deixe esse sapo seguir seu rumo. Essa que você chama de mãe, o nome dela é Rosalina, ela não é dona do sítio. Este sítio é nosso, desde seu bisavô.
-E a mãe?
-Um dia, logo depois de meu casamento com a sua mãe, sua mãe mesmo, essa senhora apareceu aqui no sítio procurando um sobrinho, só que nunca morou alguém aqui que não fosse de nossa família. Ela não acreditou, disse que o sítio era dele e que ia sentar para esperar. Passou a tarde sentada lá na sala, não disse uma palavra. Quando escureceu sua mãe convidou para jantar, depois arrumou quarto para ela dormir na casa onde agora eu vivo. Ela ficou. Todas as tardes sentava lá na sala para esperar o sobrinho. Um dia a levamos até a cidade, a um médico, ele conversou um tempão com ela e depois nos disse que ela tinha uma doença, Alzheimer. Deu uma receita enorme, a velha disse que não tomaria nada daquilo. “Remédio só tomo pra dor e não tem nada me molestando, não tomo.” Quando sua mãe morreu, saí daquela casa, não suportava andar por aqueles cômodos e não encontrar sua mãe. A velha foi para lá. Nesse tempo, mesmo doente, mesmo sem saber o seu nome, cuidou muito bem de você.
Enquanto homem e menino conversam mostrar imagens da velha e de garças voando.
-Pai, o senhor me leva para ver o mar?