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A criança e a vitrine

Luíz Horácio

Era uma criança, uma criança atravessando a rua para entrar no ônibus que a levaria de volta para casa. Não posso afirmar se tinha nove ou dez anos. Talvez onze. Não sei. Não lembro. Quero esquecer. Não consigo.

Não lembro ao certo o horário, mas era meio da tarde, disso tenho certeza.
Fazia tempo, não sei ao certo quantos anos, nós não morávamos juntos, ele vivia com a inocência e eu dividia o tempo com a culpa.
Culpa … era uma criança, uma criança atravessando a rua, e eu…Eu passava por ali, indo não sei, não lembro, para onde. Fugindo. Na certa fugindo. Naquela época eu já fazia isso, hábito que conservo. Fugir, fugir de mim, me afastar ao máximo
dessa capacidade que tenho, de sofrer, e de fazer sofrer.
Não posso afirmar que aquela criança sofria, que seu sofrimento fosse motivado pela minha ausência. Não, eu nunca acreditei que pudesse provocar saudade em quem quer que fosse. Muito menos numa criança, muito menos numa criança, como aquela, que tinha seus brinquedos.
Eu passava por aquela rua, a criança acabara de sair da escola de natação, pequena, levava uma bolsa enorme que sacudia pelo ar, parou frente a vitrine de uma loja de brinquedos, sonhou por instantes, breves instantes, com algo que gostaria de ganhar, eu passava. Uma criança solitária olhando a vitrine de uma loja de brinquedos, poucas imagens me assombram mais do que essa. A criança impotente frente a algo que ela cobiça. Nada a fazer. E aquela criança era meu filho. Na
rua...sonhando.

Logo a criança atravessaria a rua, não tive tempo de vê-la entrar no ônibus. Não fui capaz de descer da condução, do ônibus, do táxi, do carro, não lembro, não consigo lembrar, que me levava. Era preciso chegar a algum lugar. Meu filho, a
criança que atravessou a rua, estava só. Será que em seus pensamentos ele sabia que estava só, que seu pai o ignorara por motivos que até hoje desconhece. O que pode ser mais importante que um filho? O que pode ser mais importante para um pai que o seu filho? O quê?
Há quanto tempo ele cumpria aquele trajeto, atravessava aquela rua movimentada e, ao chegar à casa, a sua espera, quem? A empregada.
Ah como eu gostaria de saber o que se passava em sua cabeça naqueles dias sem pai, naquele momento frente a vitrine, na hora em que acionava a campainha do apartamento e era recepcionado pela empregada.
Sei que as crianças não sabem sentir raiva e meu filho, longe de mim desde seus três anos, não sabia o significado de ter pai.
Pablo, Pablo é o nome de meu filho, eu escolhi chamá-lo assim, sua mãe aceitou. Ele tem trinta anos e um filho, eu conservo a culpa e um medo. De um dia ser visto por ele, tentando atravessar a rua na precariedade de minha velhice, e ele passar, me ignorar; sem minha covardia, parar e permitir que o veja.
Uma vez conversei com ele sobre o dia em que o vi saindo da escola de natação. Mostrei-lhe minha preocupação e ele, homem feito, disse apenas; “queria que eu ficasse trancado em casa?”
E eu não disse o que precisava ser dito: “não, eu queria estar segurando sua mão” A vida não oferece segunda chance, é tolice acreditar no contrário, a vida em seu gesto sádico aponta o caminho onde ocorrerá o sofrimento de alguém, perpetrado por mim, por você.
Adiante, bem adiante, em seu gesto cruel, permitirá a repetição, e eu, você, buscaremos nos redimir, lamentavelmente os atores de tal cena serão outros. A quem impingi minha crueldade, travestida de omissão, falta de amor, falo de Pablo, meu filho, ah com esse jamais terei outra chance. Recomenda-se que não me aproxime de meu neto.

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