A poesia "inflamável" de uma Poeta Inflamada
Adna Selvage, também conhecida como Poeta Inflamada, é uma poeta ativista LGBTQIAPN+ que tem se destacado em eventos e prêmios importantes na literatura, como Folia Literária Internacional do Amapá, Expo Favela e Prêmio Internacional Brasil - Guiana Francesa. Ela é natural de Santarém e radicada em Macapá. Adna lançou seu primeiro livro de poemas A dependência do amor, na Favela Literária, durante a etapa regional da Expo Favela, sendo depois selecionada para a etapa nacional, realizada no início desse mês em São Paulo. O livro aborda o empoderamento feminino, o amor entre mulheres e o combate à violência contra a mulher. Em entrevista exclusiva para O Zezeu, Adna compartilha sua jornada como poeta, ativista e sobrevivente de abuso sexual.
O Zezeu: Como foi o processo de escrita e publicação do seu primeiro livro A dependência do amor?
Adna Selvage: O Processo de escrita foi da lua de mel ao término. Então, teve momentos que eu estava super feliz escrevendo e outros que estava super triste. Mas foi escrevendo que consegui lidar melhor com tudo que estava sentindo. Foi como gerar um filho, mas levou anos, porque eu tinha muito medo de expor meu coração e também pelas condições financeiras. Sou bartender atualmente. É disso que vivo. Mas ainda é uma profissão pouco valorizada no nosso estado. Ainda mais pra uma mulher. Então, foi graças ao apoio da poeta e escritora Pat Andrade, que me convidou pra lançar meu livro na Expo Favela. Ela já havia me ajudado na correção fazia um tempo e eu ainda não tinha tido condições financeiras pra lançar. E quando veio esse convite, falei com minha mãe, namorada e amigas que me ajudaram na produção pra conseguir entregar tudo a tempo do lançamento na Expo Favela Amapá.
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O Zezeu: O que significa para você ser uma poeta "inflamada"? Como você desenvolveu esse estilo e essa identidade?
A.S: Eu escolhi esse nome por que é assim que me sinto quando escrevo, quando me revolto com tudo de ruim que aconteceu na minha vida e, infelizmente, na vida de amigas e nós, mulheres, de modo em geral, quando somos abusadas, silenciadas e mortas. Nasci dia 18 de maio, dia de Luta e Combate Contra o Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes e dia da Luta Antimanicomial. Infelizmente eu passei por tudo isso e senti na pele o peso dessa dor e desse trauma. Não tinha como não ser inflamada.
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O Zezeu: - Como você vê o papel da poesia marginal na sociedade brasileira atual?
A.S: Nossa poesia é vital e essencial, primeiro pra nós mesmas, porque fizemos da nossa arte, nossa terapia. Não que você tenha só que se refugiar na arte pra lidar com seus traumas. Porém, sabemos que nem todo mundo tem condições de pagar por um tratamento e que, infelizmente, na nossa rede pública ainda não há tratamento digno para pessoas com transtornos mentais. Então, na poesia, eu busquei alívio, libertação, acolhimento. Nela eu descobri que não era só eu que estava sofrendo e precisando de ajuda e descobri que só o fato de eu estar discutindo sobre saúde mental, sobre abuso sexual, que são assuntos que ninguém gosta de ouvir ou discutir, principalmente por que toca na ferida da "família tradicional brasileira" - que é onde mais acontecem esses abusos - foi aí que eu entendi a importância e relevância do meu trabalho como poeta marginal.
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O Zezeu: Quais são as principais influências e referências para o seu trabalho?
A.S: Acho que minha primeira influência marcante de artista mulher foi Frida Kahlo, porque ela não tinha medo de falar o que sentia. Mesmo que fosse feio e triste, ela estava ali, exposta, quebrada, mostrando toda a sua vulnerabilidade e força de, mesmo em pedaços, estar viva, pintando e se expressando. Depois veio Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Tati Bernardi, Tatiana Nascimento, Conceição Evaristo - em sua maioria mulheres, porque só uma mulher pode entender a dor e o prazer de ser mulher. Então, mulheres sempre são minhas referências e meu foco. Tem também Ana Mendieta e Marina Abramovic, que são performers e multi artistas. Sereia Caranguejo, que é uma artista maravilhosa aqui do nosso estado; Rose Show; minha mãe Robenita, que me deu esse dom da escrita - ela também é Poeta. Nossa! Podia passar horas só falando sobre essas mulheres incríveis em que me inspiro e que me dão forças pra continuar exercendo minha arte.
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O Zezeu: - Como você concilia o seu ativismo LGBTQIAPN+ com a sua produção literária?
A.S: Eu entendi que, só por eu ser mulher, já sou um corpo político. Então tudo é sempre muito junto. Continuar lutando pra existir num sistema machista, misógino, que não foi feito pra pessoas como eu. Decidi trabalhar por conta própria (sem ser CLT) por questões de saúde mental. E decidi lançar um livro falando sobre amor entre mulheres num momento em que, mais uma vez, os nossos direitos estão sendo tirados. Tentar não enlouquecer ou sucumbir de depressão. Há tanta violência e desigualdade! É uma luta diária. E tem vezes que eu só não consigo levantar. Porque uma coisa está sustentando a outra e tem vezes que eu só não consigo lidar e consciliar. Então eu só tiro aquele tempo pra eu sentir tudo que eu preciso; pra poder respirar e depois continuar lutando. Porque, infelizmente, é uma batalha sem fim e o que eu tento fazer hoje é, pelo menos, deixar esse caminho mais leve e com o máximo de ferramentas possíveis pra próxima geração sofrer menos.
O Zezeu: Você enfrenta algum tipo de preconceito ou discriminação por causa da sua orientação sexual e da sua expressão artística?
A.S: Eu já passei por muitos abusos. Infelizmente, minha infância, adolescência e início da fase adulta foram muito difíceis. Por isso também descobri minha sexualidade tardiamente. Teve uma vez que eu estava com uma namorada e fomos ameaçadas de morte. Só porque estávamos andando de mãos dadas, um carro ficou seguindo a gente mas, enfim, graças a Deus estamos vivas! Tinha uma viatura no caminho. Mas ao invés de sermos acolhidas, ainda nos julgaram porque estávamos andando tarde da noite na rua, sendo que nem era tão tarde assim. Mas se fôssemos homens andando pra ir comprar uma cerveja, não teríamos sido julgadas. Então, infelizmente, o preconceito está sempre aí. Independente da nossa sexualidade, só por sermos mulheres, já nascemos condenadas e se formos o mínimo "fora da curva", pior ainda.
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O Zezeu: - Como foi a sua participação na Expo Favela, tanto na etapa Amapá quanto na etapa nacional?
A.S: Eu e minha equipe ficamos imensamente felizes. Nem acreditei quando falaram que tínhamos passado pra etapa nacional e, mesmo não tendo sido finalista, só de ter estado ali contando nossa história, sendo ouvida, já foi a realização de um sonho! Por que pude ver que quando a gente luta pelo que a gente acredita e faz aquilo com amor, podemos ir muito longe!
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O Zezeu: Quais foram os principais desafios e aprendizados que você teve nesses eventos?
A.S: Aprendizado foi nunca mais desacreditar de mim mesma, das minhas causas e afins. Fiquei doente no segundo dia de feira e foi muito difícil pra mim, porque lutei muito pra estar ali. E me ver doente, sem nem conseguir andar, foi muito difícil. Mas, mesmo doente, eu fui de cadeira de rodas e fiquei o máximo que pude lutando por aquele sonho!
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O Zezeu: Para fechar esse ano de 2023, você ainda foi agraciada com o Premium Internacional Brasil & Guina Francesa, promovido pelo ICDAM Amazônia, pela Escola Técnica Francesa e pela Ordem Templária do Brasil. O que representa para você um prêmio desse, vindo de instituições aparentemente tão conservadoras?
A.S: Olha, honestamente, não me senti acolhida. Porque do momento em que cheguei ali até o final, foi só ego de homens, falando coisas de homens, e eu fiquei me sentindo super deslocada. Porém, como essa premiação foi uma indicação, acredito que eu só estava ali por que fui indicada por outra mulher, a professora, escritora, cantora, compositora e multi artista Rose Show, criadora do Prêmio Amazonidas Protagonistas, que, até onde eu sei, é o único prêmio do Estado do Amapá voltado pra enaltecer e honrar o trabalho das nossas mulheres Amazonidas! Porque se fosse depender daqueles homens terem interesse de conhecer meu trabalho, acho que jamais estaria ali. Mas fui e fiquei firme e forte até o fim. Eles não falaram sobre meu trabalho. Só chamaram meu nome. Nem sequer falaram sobre meu trabalho, minhas causas. Mas quando era pra chamar homens, eles davam o microfone e, enfim... Mas foi importante estar ali pra furar mais essa bolha. Porque sim, nosso trabalho merece ser reconhecido e premiado. Porque nós, mulheres, que estamos no front - principalmente mulheres LGBTQIAPN+ - somos muito invisibilizadas. O tempo todo temos que estar militando pra ocupar os espaços, pra poder mostrar que existimos, que temos trabalhos incríveis e que só precisamos de espaço e oportunidades pra crescer.
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O Zezeu: - Como você avalia o cenário literário e cultural do Amapá?
A.S: Esse ano, em especial, foi o ano que meu trabalho teve mais visibilidade. Pude participar de editais e, finalmente, ter meu trabalho sendo visto e reconhecido. Eu sentia muita falta de representatividade, sabe? Porque sou uma mulher lésbica, sobrevivente de abuso infantil e eu sentia falta de ler sobre isso, de trazer discussões sobre essas temáticas e, finalmente, estar nesses ambientes e poder trazer essas pautas é extremamente importante não só pra mim como pra outras pessoas que partilham da mesma vivência. Precisamos nos ver nos espaços e nos sentir acolhidas e representadas. Sinto que hoje, finalmente, esse cenário está começando a mudar e está tendo mais representatividade. E espero que continue assim, porque ainda precisamos furar muitas bolhas. Porque, infelizmente, as mulheres LGBTQIAPN+ ainda não têm visibilidade e espaço o suficiente pra mostrar seus trabalhos.
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O Zezeu: Quais são as principais dificuldades e oportunidades para os escritores e artistas da região?
A.S: Com certeza a dificuldade maior é financeira. Porque, pra quem trabalha por conta própria, conseguir lançar um livro é uma missão quase impossível. Por isso levei tanto tempo e só consegui porque tive apoio. Então, acho que faltam mais editais pra todes, onde não fique fechado só para artistas da "velha guarda". Porque, às vezes, os editais vêm, mas só pra quem já lançou, sendo que, como aquele artista novo vai conseguir lançar se o edital não dá nem espaço, sabe? Então, que tenham mais editais com recursos pra esses novos escritores terem a oportunidade de contar suas histórias!
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O Zezeu: - Quais são os seus projetos futuros como poeta e escritora? Já tem algum novo livro sendo trabalhado?
A.S: Sim. Quero lançar o próximo livro: A dor que ninguém vê. Que, assim como o primeiro, também vai ser um livro autobiográfico, partilhando vivências sobre infância, adolescência, vida adulta, como essa mulher que passou por tantos traumas consegue lidar e existir num mundo que não foi feito pra ela. Também quero lançar um curta que está na gaveta faz anos. É de extrema importância eu trazer esse meu trabalho pro áudio visual, porque quero me comunicar de várias formas, pra poder conseguir alcançar cada vez mais um público maior e, assim, conseguir ir furando cada vez mais bolhas e ocupando espaços que sempre deveriam ter sido nossos.
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O Zezeu: - Como você se relaciona com os seus leitores?
A.S: Sempre que eu posso tento conversar, saber a história de cada uma. Fico feliz de saber que meu trabalho, de alguma forma, as ajuda com seus processos.
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O Zezeu: Que tipo de feedback você recebe sobre as suas poesias e o seu livro?
A.S: Até então tem sido positivo. O primeiro livro fala sobre amor entre mulheres do início ao fim dessa relação. Então algumas manas me contam que ficaram bem sensibilizadas e é esse o intuito, que as pessoas possam ler e sentir alguma coisa sobre.
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O Zezeu: - Que conselho você daria para as pessoas que querem começar a escrever poesia ou se expressar artisticamente?
A.S: Que não tenham medo de se expressar. Vai ter gente que não vai gostar, que vai dizer pra você desistir e, talvez, no início, tenha mais gente "do contra" do que te apoiando. Mas nesse momento você só tem que pensar o seguinte: "O quanto isso é vital pra mim?". Se isso realmente for o seu sonho, a única coisa que pode atrapalhar ou lutar por ele, é você mesma! Então, nesse momento, mantém o foco no teu processo; estuda o máximo que puder; se reune com pessoas que estejam no mesmo propósito. Assim, você vai construir uma rede de apoio pros momentos difíceis. E não desiste! Mesmo que esteja difícil, se é o teu sonho, ele só não vai acontecer se você desistir! E pode ter certeza que eu sei que não é fácil e que nem pra todo mundo é possível. Por isso eu falei sobre a rede de apoio. Não tenha vergonha de pedir ajuda! Por que ninguém consegue nada sozinho. Então, acredite em você mesma e agarra na rede de apoio!