Enpretiadu: Por entre as Luzes da Cidade
Seu nome é José Simão Jr., mas ele é mais conhecido como Enpretiadu - escrito assim mesmo, só pra "dar um negócio".
Vendo de longe, parece só mais um moleque preto de periferia. Mas basta se aproximar um pouco para perceber um poeta que transformou adversidades em arte.
Estudante de Filosofia e artista independente, Enpretiadu encontrou na poesia uma maneira de superar desafios financeiros, lançando, "na braba", um livreto que se tornou não apenas uma fonte de renda, mas também uma expressão de sua alma. Artista que valoriza a conexão com seu público, ele vê cada verso como uma ponte, uma forma de diálogo que permite discutir questões importantes. E, mesmo sendo um artista marginal, aos poucos vai se tornando
reconhecido e apreciado, com suas palavras ecoando nos corações de outros tantos moleques pretos de periferia.
Para ele, a poesia é uma voz para a comunidade periférica, uma luz que ilumina as histórias muitas vezes esquecidas.
Enpretiadu destaca a importância da interação entre artistas e público, e a necessidade de reconhecimento e oportunidades para os artistas apresentarem seu trabalho. Ele aponta a falta de estrutura como um desafio significativo, especialmente para os artistas periféricos. Mas, apesar das dificuldades, ele valoriza a capacidade de se conectar com o público e discutir questões importantes através de sua poesia. Acompanhe-nos nesta jornada enquanto exploramos a vida e a arte de Enpretiadu.
Silvio Carneiro
Frantz Fanon
Neusa Santos Souza
O Zezeu - Como surgiu o seu nome artístico Enpretiadu? O que ele significa para você e para a sua identidade como poeta?
Enpretiadu - Falar sobre nome artístico é sempre uma viagem, né? Porque surge de uma forma inusitada e, incrivelmente, consegue contemplar muito bem a mudança de significado que exigiu dele à medida em que eu amadureci.
O nome Enpretiadu surgiu num dia em que eu estava na casa de um amigo de infância. A gente era adolescente e tava trocando uma ideia no quintal e tinha uma pilha de tijolos ali. Um tijolo caiu e acertou o dedo do pé do meu amigo, deixando roxo. Daí — eu não lembro bem quem foi, não sei se eu ou ele — um olhou pro outro e disse “será que ainda adianta passar gelo”? E o outro soltou: “Não, já tá tudo ‘empreteado’, não tem mais volta”. E, desde então, isso ficou na minha cabeça. Essa palavra é engraçada, tem uma presença e eu comecei a usar como user do meu Instagram. E passou o tempo, “empreteado” ganhou outro significado.
O nome artístico (ou vulgo) é uma experiência de devir. É um tornar-se. E eu acho, inclusive, essa palavra “devir” bem interessante pra apresentar isso, porque é justamente isso que ela vem falando: “Empreteado” é aquele que foi tornado preto.
Esse nome começou a ganhar um novo significado a partir do meu processo de amadurecimento tanto pessoal quanto de consciência política, social… que foi se tornando cada vez mais crítica ao longo dos anos. E, principalmente, a partir do meu contato com a obra do psiquiatra e filósofo martinicano Frantz Fanon, que também foi um dos grandes nomes presentes na guerra de libertação da Argélia.
O Fanon marcou muito a minha vida com o livro Pele negra, máscaras brancas (Ubu; 1952-2020), no qual ele mostra como que a identidade, o “ser negro”, é um sujeito que nasce como um substantivo daquilo que é não-humano; daquilo que é feito pra ser usado como mão-de-obra; daquilo que é feito pra ser o oposto do branco que é “o caminho, a verdade e a vida”.
Então, o “empreteado” é aquele que é tornado negro através da complexidade das relações sociais as quais ele se insere. É um sujeito que acaba passando por esse processo: Vem
como humano ao mundo, mas passando por esse processo de devir — esse processo de “tornar-se negro”, como fala muito bem a Neusa Santos Souza.Por isso que eu falo também que a demanda que minha consciência tava exigindo de um nome artístico, Enpretiadu conseguiu atender maravilhosamente bem. Porque conseguia tocar num ponto forte que tinha sido
primordial, a partir do momento que eu tive um primeiro contato com a obra do Fanon. Então, Enpretiadu vem, justamente, dessa visão do devir, de quem foi tornado negro e, concomitante a esse processo, jogado à margem da sociedade, a partir do momento em que interage com essa dinâmica dessas relações sociais complexas.
E por ser jogado à margem, ele se encontra numa situação de portador de extremo ódio. E com esse ódio, que ele entende como um afeto, ele entende necessário pra se alcançar o sensível de quem o ouve.
A forma do Enpretiadu de alcançar essa sensibilidade é muito através desse ódio a quem nos mata, nessa guerra aos senhores. O Enpretiadu, até na própria forma da escrita, já se encontra na margem. E, enquanto marginal, é aquele que causa incômodo; é aquele que não devia estar ali — nada melhor do que usar o palavreado nortista: “dá um negócio” — dá um negócio, a própria escrita do nome. Já começa a incomodar por aí. E também é uma estética que eu acho agradável, colocar o “n” ali…
Eu brinco, às vezes, que o Enpretiadu não é o Simão! E nem é tanto brincadeira assim porque, às vezes, parece que o Enpretiadu se faz como persona de fato. Parece que é ele quem tá subindo nos palcos, toda vez que eu tô subindo. Porque eu mesmo, o Simão, sou uma pessoa mais tímida, mais introvertida. Enquanto o Enpretiadu é mais “nariz empinado” quando sobe no palco, porque sabe que ele é o pai da marretada, ali. Sabe que, se jogar no peito dele, ele dá o nome, vai falar mesmo o que tem que ser dito. Vai expor todas as críticas; vai expor o que quer falar e vai fazer isso através de uma performance.
Antes eu até me assustava com isso, mas com o tempo, eu fui aprendendo a abraçar e perceber que, quanto mais eu conheço Enpretiadu, mais eu tô conhecendo uma parte significante de mim.
O Zezeu - Você se define como um poeta marginal. O que isso significa na sua concepção? Quais são as principais características e desafios de ser um poeta marginal no Brasil e, principalmente, na Amazônia?
Enpretiadu - Acredito que poesia marginal pode ser explicada como aquela que se coloca no papel de apresentar uma imagem muito diferente do que os cartões postais querem apresentar.
Por que eu digo isso? A gente não quer vender uma imagem bonita, romantizada, idealizada do nosso estado. A gente que é poeta marginal está preocupado em apresentar a realidade como ela é. E ela é violenta, sofrida, uma realidade que espezinha a classe trabalhadora todo dia.
Eu acredito que a impressão de um protagonismo popular é algo que favorece essa visão diferenciada do que os cartões postais têm a oferecer. Porque, a partir do momento que o artista se compromete com a impressão desse protagonismo popular dentro de sua obra, ele se compromete a apresentar ali quais são as demandas, interesses e objetivos que o povo tem mediante essa realidade — não só isso, como também a visão. Porque a gente tem a visão dos de baixo, né? E isso é algo importante porque, enquanto marginalizados, não estamos centralizados no debate. Nossa visão é a menos vista. Apesar de sermos maioria, ela não é tão apresentada assim e a forma como isso se faz é muito interessante, a partir não só das gírias, mas também da forma de falar.
E acho que aqui no Norte isso sempre marcou muito, porque a gente tem nosso próprio jeito de falar que é muito característico.
Eu mencionei antes acerca da minha relação com o rap, que me influenciou desde pequeno. Eu lembro que a primeira vez quando eu ouvi um grupo de rap amapaense, eu tive uma sensação de identificação muito forte, porque os caras estavam ali, rimando com as gírias que eu usava ou ouvia constantemente no meu cotidiano e estavam ali com essas mesmas palavras, essa mesma forma de se expressar, passando uma visão totalmente crítica acerca da nossa realidade — o pessoal do C.R.G.V.; o pessoal da Máfia Nortista; o pessoal do Relatos de Rua; Raciocínio da Ponte, enfim, entre outros, que de grupos de rap aqui no Amapá estamos bem servidos.
Eu acho que essa questão da linguagem se torna algo muito importante, tanto na identificação quanto também na forma como está apresentando esse povo dentro das nossas obras — o povo enquanto o centro do debate.
E não só isso! Acho que uma das partes mais importantes também da poesia marginal é esse forte teor de resistência de fato. De se virar contra uma produção de cultura em massa que visa transformar em mercadoria, o que a gente quer produzir enquanto matéria de fomento de pensamento crítico — até porque é bem difícil se voltar contra uma realidade violenta quando você sabe que o porquê e os culpados da forma violenta de ser da sociedade são aqueles mesmos que estão no poder há muito tempo!
Por isso que, quando eu falo sobre isso, eu sempre digo: Não estou falando somente de quem ocupa cargos políticos, mas estou falando também dos grandes empresários, latifundiários, enfim, os burgueses que a gente tem não só no Brasil como também no Amapá, roubando todas as nossas riquezas. Porque nosso estado pode ser mesmo muito rico, entretanto a riqueza daqui não é para a gente. Eu, pelo menos, não tô vendo no meu bolso! E, por isso, eu tô fazendo poesia — é uma característica importante do poeta marginal isso.
Eu acredito que essa característica também se enquadra enquanto um desafio porque, a partir do momento que você se volta contra um sistema, através das letras, fica difícil conceber uma possibilidade de sucesso, seja lá o que seja isso — uma possibilidade de sucesso na certa, até porque se tu tá falando contra o sistema deles, tu não é muito bem-vindo, né?
Mas, através de outros meios, a gente consegue veicular essa forma de informação. E isso daí, ao mesmo tempo que é um desafio, faz parte da característica de um artista independente e também de um poeta marginal, aquele que tá ali mesmo para falar o que ninguém tem coragem de falar. É aquele lá que vai falar sobre nossa realidade, apontar os culpados, cobrá-los e, também, exigir uma organização para que o povo não tenha que sofrer da mesma forma como tá acostumado a sofrer.
Essa parte acaba sendo de grande desafio. Às vezes, por só falar um pouco da nossa realidade, a gente pode ser visto como uma possível ameaça. E, que bom que somos vistos assim! Porque a meta mesmo é ser um exemplo para o sistema.Tanto no Brasil quanto na Amazônia, isso eu acredito que se apresenta das mesmas formas. Essa dificuldade com a nossa estrutura enquanto artista, dificuldade com o reconhecimento que a gente tem ali dentro do meio artístico mesmo. Mas algo que eu tô percebendo são umas pequenas mudanças dentro da cena, mas que ainda precisa de muito para prosseguir na nossa evolução. Mas, claro, eu percebo mudanças que, em certa
medida, amenizam o tamanho desse desafio, mas que também dão novas caras para outros desafios.
Porque a gente vai estar sempre em contradições e a parada é sempre buscar a forma de superar essas contradições. O desafio sempre vai ter, só que de formas diferentes.
Enpretiadu e C.R.G.V. na Folia Literária Internacional do Amapá (2023)
Toto: Nayana Magalhães/GEA
Máfia Nortista
Relatos de Rua
Raciocínio da Ponte
E, além de toda a falta de grana, às vezes, o fato de não ser ouvido ou limado em algumas possibilidades de projetos ou mesmo festivais, a arte marginal é recriminada. A repressão por esses meios ou pelos meios físicos violentos em que a gente sempre fala nas nossas poesias, é complicado, complicado…
Às vezes, tá numa arte ou uma poesia e, quando menos perceber, tá levando enquadro… É complicado. É um desafio que eu não poderia deixar de falar. Porque é o que marca muito a realidade do artista marginal — pelo menos aqueles que estão tendo uma real vivência com essa margem da sociedade.
E quanto ao que eu falei sobre as mudanças no cenário, principalmente aqui na Amazônia, eu vejo essas mudanças a partir da forma como eu consegui me inserir na cena da literatura aqui dentro do estado.
Certas vezes eu percebo que, em muitos desses espaços da própria cena, eu me enquadro enquanto uma exceção — por enxergar que muitos artistas da poesia marginal que têm esse propósito de mudar mentes; passar uma mensagem; passar uma visão ali; não têm dessas oportunidades justamente porque, primeiro que ser artista já não tem muito incentivo — principalmente aqui no estado. E, quando não se tem muito esse incentivo e as poucas oportunidades, as poucas possibilidades que a gente tem através de editais, muitas vezes muita gente não conhece, não sabe do que se trata.
Tem gente que produz arte há um tempo, mas tem um desconhecimento... E é complicada essa questão.
No momento que eu me enxergo nesses espaços, em que eu me vejo com esse som, eu vejo também o meu gás de tentar mudar esse cenário.
Eu vejo quanto é necessário a gente estar nesses lugares, mas também tá fazendo a nossa correria de forma orgânica, que eu acho que é um dos principais desafios tanto na Amazônia quanto no Brasil. Permanecer nossa produção dessa maneira orgânica junto ao povo sempre, e não só dependendo desses grandes palcos para sermos ouvidos.
MC Deeh
Racionais MC's
Facção Central
Trilha Sonora do Gueto
Black Alien
BK
Djonga
Emicida
O Zezeu - Você busca apresentar o cotidiano do proletariado brasileiro e amazônida, principalmente da população negra, em seus versos. Como você faz isso? Quais são as suas fontes de inspiração e referência? Como você dialoga com outros poetas que abordam temas semelhantes?
Enpretiadu - Eu sempre busco trazer um olhar crítico sobre a realidade que me cerca. Então, muitas vezes, é exatamente isso que eu faço. Eu sou uma pessoa que mora numa área periférica e eu não preciso andar muito para enxergar a realidade que eu represento nas minhas letras. Então é algo que está presente nas minhas letras, justamente, porque é algo que eu vivo, é o que eu vejo, é o que consigo sentir. E através desse conseguir sentir, eu expresso na minha poesia não só o acontecimento, mas a forma como acontece; porquê acontece; a qual finalidade se está tendendo; porquê isso está acontecendo e, também, as consequências que isso traz para quem sofre e as benesses que traz para quem garante que continue ocorrendo — isso seja em situações de violência policial, seja situações de miséria, de fome, enfim, todas essas situações, todas essas formas de violência.
Inclusive, tem muito mais do que as letras que eu citei, que são revividas todo dia e também tem o fato de que eu procuro nunca apresentar essa realidade em um tom professoral, em um tom muito característico de academicistas — até mesmo que, para mim, nem todo mundo que está na academia é academicista, são coisas totalmente diferentes…
Mas vai diferente de um tom professoral, de tentar se colocar como o guardião daquela verdade ali que ninguém sabe e, então, isso é uma autoridade na situação só porque eu vivo essa parada. Eu tento fugir disso o máximo possível porque minha arte nela está tentando não só falar com quem está fora dessa realidade mas, principalmente, com quem está vivendo nela. Eu falo com o povo e pelo povo. Então, nunca vou tentar demonstrar um tom professoral nisso mas, sim, demonstrar um tom na minha poesia que mostre como esse é um olhar que eu tô compartilhando. Esse é um olhar que eu tô percebendo, tô apresentando uma ideia e propondo também uma solução. A gente consegue perceber esse senso forte pela organização como chave para a libertação de fato.
Sobre as fontes de inspiração e referência, cara, eu tenho — eu não canso de falar — eu tenho muita influência mesmo do movimento do mundo como um todo, principalmente do rap. É algo que eu cresci tendo contato, tive um contato mais íntimo e é algo que acabei levando para a minha vida mesmo. O hip-hop, principalmente, é que eu dou uma pá, porque é algo que estava muito mais presente na minha realidade, estava muito mais próximo e é algo que eu tenho também. É sempre valorizar o que tem em casa. E eu acredito que a gente tá muito bem servido aqui no estado. E um prato cheio de referências é o que não falta. Eu mesmo sou muito influenciado pelo C.R.G.V. — inclusive, um grande “salve” para os meus parceiros do C.R.G.V.! — Clã Revolucionário, Guerrilha Verbal (um dos primeiros grupos de rap do Amapá), e tem também o pessoal do Máfia Nortista, o pessoal do Relatos de Rua, do Raciocínio da Ponte… tem muita gente… MC Deeh e Ana MC, que são artistas que me inspiram muito, principalmente na presença e na performance que têm em cima de palco, que eu admiro demais e que eu presto muita atenção sempre, porque sempre estou aprendendo, quando observo minhas referências, minhas inspirações. Até porque voltar às referências, voltar para isso daí que me impulsionou, parece ser meio que um retorno ao começo, para rever alguns conceitos, rever se tá tudo certo mesmo, rever, inclusive, o que eu tô escrevendo, servir como fonte de inspiração para eu começar a traçar algum novo trabalho. É sempre isso. Me reinventando e não ficando estagnado com o próprio trabalho.
Já indo para fora do Amapá, no nível nacional, a gente tem Os Racionais, Facção Central, Trilha Sonora do Gueto, Black Alien… tem muito rap aí que eu ouvia muito, que foram muito presentes em vários momentos da minha vida — acho que para todo momento da vida existe um verso dos Racionais.
E a gente não pode esquecer também a galera da nova geração, que tem nomes como o BK, o Djonga, o Emicida, que vem trazendo aí uma parada sensacional, que é impossível de não sentir uma identificação com esses trabalhos, não sentir uma identificação com o que está tentando ser colocado ali, que também me serviu de inspiração em vários momentos, e que eu procuro sempre estar aprendendo mais.
Agora, partindo para a parte da literatura — também é uma coisa que vai acabar me fugindo algumas coisas pela cabeça — mas as principais referências: É impossível não falar de Carlos Drummond, quando se trata da minha poesia, pelo fato de eu trabalhar muito como um poeta marginal. E o poeta marginal — canonicamente pelo menos, quando a gente vai ver aqueles livros sobre poesia marginal que tem para o Enem, fala lá que poesia é feita de forma mais livre e tal, e eu sinceramente até gosto um pouco dessa liberdade, que eu aprendi a ver muito no Drummond e no Oswald de Andrade também. Porque eles me apresentaram novas formas de enxergar a poesia (a poesia escrita, no caso), porque eu gosto de me aventurar, de vez em quando, gosto de ler, gosto de praticar também com as poesias que eu escrevo, não só a parte das formas que a gente tem, das formas ilimitadas que a gente tem de dinamizar mais ainda a nossa língua para fins poéticos, mas eu gosto muito também da forma como é retratada ali uma mensagem, da ideia que tem, principalmente no Carlos Drummond, sobre como a poesia é esse mar de palavras que a gente entra tentando encaixar palavras que consigam apresentar, consigam decodificar isso daí que a gente quer passar ali em um verso poético.
Sobre as inspirações, Marighella é uma referência importantíssima para mim. Marighella, que dispensa apresentações, foi um guerrilheiro, intelectual brasileiro e também um grande poeta. Não é de hoje que eu apresento referência ao Marighella não só nas minhas poesias, porque também pego muito recurso da forma como ele escrevia, como também na minha vida. O Marighella é uma grande inspiração para mim, assim como o Frantz Fanon. Não posso esquecer também ele — apesar de não estar muito ali, na parte da literatura dessa forma como a gente conhece, enquanto poesia, revista literária, livro de ficção, enfim — o Fanon, com uma produção mais filosófica, serve de inspiração para mim porque é o que fez eu conseguir pensar de outra forma essas ideias que já pairavam pela minha consciência há tanto tempo.
Eu acho que posso falar também Jorge Amado, né cara? Não pode faltar na minha lista Jorge Amado. Como é que eu já ia cometer esse pecado?! Jorge Amado... meu Deus! É, simplesmente, um anjo na minha vida. O Jorge Amado, primeira vez que eu peguei para ler um livro desse bicho, fiquei encantado com a forma como ele mostrava ser possível escrever uma prosa poética. É algo que fiquei muito encantado mesmo pelo estilo e também pela forma que ele conseguia passar o que ele queria ali, naquele estilo. É algo que me faz ter muitas ideias sobre não só questão de escrita como mesmo de performance também. Quando eu tô com algumas dúvidas e tal, eu gosto muito de voltar ao Jorge Amado.
E eu acho que a minha cabeça vai começar a dar uma pifada se eu tentar lembrar o nome de tanta gente, porque a minha poesia realmente tem muitas fontes de onde bebe. Ela não tem só uns poucos lugares de onde encontra uma fonte de inspiração, mas tenta buscar algo de cada um, tentando sempre fazer alguma coisa mais nova ao meu estilo, usando literalmente como referência.
Como eu falei, eu gosto muito de apoiar o que é de casa. Mas eu vou falar alguns nomes aqui que são mais parceiros meus. Que estamos sempre juntos, estamos fazendo algum projeto juntos ou estamos elaborando algo: Tem a Poeta Inflamada, a Adna, que é uma grande poeta e uma grande amiga também (quase que minha irmã!). Nela, eu encontro muita inspiração assim, nas nossas trocas de ideias. Tem também o meu mano Cólera, que é um mano também que faz uma poesia muito braba. Ele tá se lançando agora e eu acredito que a visão que o Cólera faz da sociedade, porra… daria de dez a zero em muita gente por aí que se acha compreendido da vida. E a forma como ele apresenta isso nas produções dele é uma forma muito sensacional, diferente, que não é algo que se vê todo dia também.
E a Adna, na forma como ela consegue falar sobre temas que representam uma realidade de violência, principalmente no que diz respeito à violência de gênero, é uma forma muito forte de botar o dedo numa ferida que a sociedade tem. E isso eu sempre vou admirar. Principalmente da forma muito impactante. Tem muita presença, tem muito conteúdo, tem muita informação. Chega a ser educativa a forma como ela faz.
Eu acho que eu vou falar esses dois hoje, para não correr o risco de falar mais gente aí, mais gente ficar com ciúmes… falar esses dois aqui hoje, na próxima entrevista eu falo mais dois, e a gente vai fazendo assim — já criou uma possibilidade de uma nova entrevista aqui para a revista, né? [risos] Mas é isso… E eu vou tentar aqui parar de fritar meu cérebro e torcer para que ninguém me odeie depois de eu esquecer muita gente, porque é muita fonte, principalmente aqui do estado né?
Carlos Drummond de Andrade
Oswald de Andrade
Carlos Mariguella
Jorge Amado
Adna Selvage - Poeta Inflamada
O Zezeu - Você diz que representa, em forma de protesto, as agruras de uma realidade violenta e precarizada, mas também procura apresentar uma alternativa de saída popular a esta realidade. Qual é essa alternativa? Como ela se manifesta na sua poesia? Quais são os seus objetivos e expectativas como poeta engajado socialmente?
Enpretiadu - Cara, a alternativa é justamente a socialização dos meios de produção e o poder para o povo.Quando eu coloco essa alternativa de saída popular, eu tô falando exatamente do poder popular sendo construído no rumo do socialismo que, pra
mim, de fato, a gente só consegue brecar essa realidade violenta, devastadora, que a gente conhece do capital, através de uma mudança na raiz do sistema. E quando a gente fala de mudar a raiz, a gente tá falando de derrubar uma estrutura.
Eu acredito que isso só possa ser feito através de não só um modelo novo de sociedade, mas que esse modelo novo de sociedade tá assentado, principalmente, na mudança da forma como o sistema funciona. Uma mudança não só da forma de funcionamento do sistema, mas mudança de sistema. Uma mudança que se faz do e para o povo. É feito pelo povo, é erguido pelo povo e conquistado pelo povo. E é feito atendendo aos interesses diretos do povo, que é a maioria. Não se trata mais de só um pequeno grupo de pessoas se beneficiando enquanto 99% passa veneno.
Acredito que a única forma de brecar com esses efeitos da colonização que deixam nossa realidade tão violenta dessa forma é através do rompimento com esse sistema capitalista que vem vigorando há séculos. Justamente porque a colonização, que é uma devastação, é algo que não acabou.
A colonização e o capitalismo são complementares. Colonização nasce, justamente, para legitimar o acúmulo de riquezas do continente europeu. O que eles chamam de “acúmulo de riquezas”, eu prefiro chamar pelo nome que é: Roubo!
Eu acho que isso daí se manifesta na minha poesia de forma bem direta, porque eu toco em aspectos de organização frente a essa realidade. E quando eu falo organização, eu falo em coletivo.
Uma frase que eu solto em uma das poesias (e que carrega essa frase como título) diz: “Não mais um só, mas um só”. Porque a gente tem que pensar, justamente, nesse processo de sair do indivíduo e se ver como parte de algo coletivo. Se ver como parte de uma luta por um bem comum, no sentido de todo mundo estar batendo no mesmo inimigo, batendo na mesma pessoa que causa todo esse sofrimento e dor nas nossas vidas de forma unitária na ação. E essa organização se faz tanto nos locais de moradia, como trabalho, estudo… É uma organização coletiva que é a chave de mudança.
É impossível que haja uma mudança somente com uma pessoa. E acho que isso é manifesto na minha poesia de forma muito direta. Mas não deixando de trazer aquele jeito poético, apesar de ser muito direto. Porque, assim, eu consigo trazer muito do que a realidade demanda da gente.
E a realidade vive demandando essa organização. Porque essa mesma realidade está contribuindo pra que a gente se desorganize, contribuindo pra que a gente passe mais tempo trabalhando, ou pensando no trabalho, ou descansando do trabalho, do que buscando realmente explorar nossas capacidades artísticas, explorar leituras que a gente teria vontade se pudesse, e também, claro, eu trago a questão de que a gente pode se desorganizar do trabalho.
A gente só sai dessa se for junto. A gente precisa estar junto, e isso daí está presente na minha poesia desde o momento que eu estou fazendo uma crítica à [companhia elétrica] Equatorial e à toda a máfia do Setup [Sindicato das Empresas de Transportes Públicos]… é um assunto recorrente na obra de Enpretiadu.
Agora, quanto aos meus objetivos e expectativas, quanto à minha vida artística com esse forte engajamento, eu vejo, principalmente, como objetivo, a minha poesia alcançar mentes. Eu acho que o objetivo principal é esse: Alcançar, mudar, promover debates necessários que a gente precisa ter sobre nossa sociedade, rotineiramente, com vistas a politizar mais o cotidiano da classe trabalhadora.
Eu acho que a minha poesia consegue isso bem, por ser uma poesia marginal e retratar o cotidiano do povo. Consegue bem suscitar, através de sentidos, essa identificação e também essa conscientização. E eu falo isso muito pelos que eu recebo — não só dos amigos que param para escutar ou ler, mas também, às vezes, até de pessoas desconhecidas, no meio da rua, que falam comigo, falam que curtem meu trabalho. Quando eu estou de rolê por aí, alguém me para e fala, “aquele poeta lá... pô, dá uns papos de visão muito macio. Curto ficar pensando com o que tu diz”… Aí eu digo que esse objetivo é o principal. Eu estou fazendo algo que tem um compromisso social e eu, até o momento, estou conseguindo atender esse compromisso que a poesia marginal e também o coração revolucionário almeja.
E quantas expectativas, cara! Quantas expectativas de mudança! Não basta só entrar na mente dos outros e incomodar com a minha poesia — porque o sentido é provocar mesmo, causar uma provocação — porque, através da provocação, a gente busca sair do conforto e busca uma mudança de fato da nossa realidade.
Eu espero, realmente, que consiga trazer não só a mudança de fato da nossa realidade mas, também, a identificação com o que eu estou falando. Trazer uma reflexão carregada também desse ódio de classe que é algo muito importante na minha poesia.
Acredito que, de expectativa, eu tenho mesmo a trazer, não só essa conscientização, mas trazer junto com ela um processo de mudança, não tendo a pretensão de ser o único disso, mas que consiga fazer um barulho e, assim como os outros que me antecederam, consiga chamar mais gente para compor esse barulho, consiga fazer esse barulho cada vez mais alto e continuar propagando esse barulho, porque a gente está aqui mesmo para incomodar, incomodar quem merece, que fique claro.
O Zezeu - Você já atuou na produção do Sarau do Sul, do Sol e do Sal, um projeto que busca promover a oportunidade de inserção no círculo de cultura amapaense de poetas pouco vistos ou novos na cena. Como foi essa experiência? Qual é a importância de espaços como esse para a divulgação e valorização da poesia marginal? Como você vê o cenário atual da poesia produzida no Amapá?
Enpretiadu - As experiências dos saraus (que já conta com três edições) é algo que eu planejo retornar, dada a importância que tem esse trabalho, tanto na minha trajetória, como também dos artistas, dos poetas que participaram.
O sarau é uma experiência muito massa, porque eu fico ali como apresentador, mas também como um dos poetas, acompanhado de mais dois que são convidados.
É interessante a forma como foi aprimorando também esse caráter de mestre de cerimônia, através dos eventos, para apresentar a cultura de rua, essa cultura periférica que invade o centro no momento que a gente começa a fazer o sarau, começa a valorizar o trabalho desses artistas que são pouco vistos, que não têm muito espaço dentro da cena. Porque a coisa mais difícil no início, eu acredito, seja uma valorização, alguém enxergar seu trabalho, conseguir fazer ser visto com seu trabalho. Isso nem tem a ver tanto com o talento. Tem mais a ver com as oportunidades que os artistas têm nessa cena, de conseguir apresentar o seu trabalho, principalmente quando esse trabalho foge do padrão hegemônico do fazer poético.
A poesia marginal não tem esse nome à toa. Está encontrada ali, na margem da sociedade. À margem também do próprio circuito artístico, muitas vezes.
E trazer esses artistas, que acabaram se tornando amigos meus, foi muito massa — tanto pelo feedback do público, quanto dos próprios artistas sobre o evento.
É uma experiência interessante e eu vejo como muito importante, porque a gente precisa de uma força para o nosso pontapé, uma força para quando a gente está iniciando, uma força para mostrar que a gente é artista ali também. É isso também que a gente tenta passar muito com os nossos saraus. Que muita gente escreve poesia, mas não se vê como poeta. Mas, se escreve poesia, tu é um poeta! O que está faltando para ser reconhecido é trabalhar com a tua arte, botar para o mundo, te apresentar, fazer uma performance ou fazer alguma forma de produção com a tua arte. Uma
produção que não fique só para ti, que seja tipo um filho que coloca no mundo, que cria independência e começa a ir para além do próprio artista e alcançar o mundo de várias formas diferentes.
Então, o sarau tem essa importância, essa relevância e acho que a melhor descrição que eu tenho dessa experiência é a socialização que a gente criou ali, enquanto artista. E a socialização também do público.
Quanto ao atual cenário da poesia produzida no Amapá, em questão de talento, eu vejo que a gente é um estado que tem um prato cheio (culturalmente falando). A gente tem muita gente talentosa aqui. Muita gente que sabe trabalhar; muita gente que é bem consciente do que faz com sua obra; gente que tem muita criatividade; muita forma de usar essa criatividade inovadora.
Mas quanto à estrutura, aí começam os problemas! Apesar de estar mudando de forma paulatina, a gente ainda vê muita falta de estrutura para quem trabalha com literatura aqui, não só no Amapá, mas no Brasil. Mas aqui o problema se recrudesce, justamente porque a gente é uma ilha excluída do resto da nação. Se já é complicado para o restante do país, alvará [imagina] para nós. Então eu vejo essa questão da estrutura como algo importante a ser tocado, quando a gente vai falar da produção poética aqui no Amapá. Principalmente, porque o nosso carro-chefe de cultura é o que a gente tem dentro das periferias, que consegue criar vida a partir das poesias dos grandes poetas que a gente tem aqui. E quando eu falo grandes poetas, eu me refiro principalmente àqueles que estão dentro dessa área periférica, não só localmente falando, mas também de forma identitária porque, querendo ou não, a periferia é um marcador social. O fato de ser periférico é um marcador social que acaba criando essa forma de subjetividade, e com essa subjetividade a gente consegue alcançar o sensível do nosso público, que é para quem a gente quer falar. E esse para quem falamos é, justamente, o pessoal que vem de onde a gente vem, da periferia.
Eu acredito que a falta de estrutura pode ser um impedimento, inclusive um forte castrador de talentos que a gente tem aqui no estado.
A gente tem muita coisa a ser apresentada para o mundo, que merece não só ser ouvido por nós aqui, mas para além disso também. Sair para fora. “Sair para fora”, olha a redundância do poeta! [risos]
O Zezeu - Você está lançando o livro Luzes da cidade, que contém poesias inéditas e outras já apresentadas em seu repertório de performances. Como foi o processo de criação e publicação desse livro? O que ele representa para você e para a sua trajetória como poeta? O que você espera que os leitores sintam e reflitam ao ler os seus poemas?
Enpretiadu - Eu sou graduando em Filosofia na UEAP e sou bolsista do Programa de Residência Pedagógica. A UEAP não costuma pagar bolsas no início do ano por conta de problemas que acabam causando o atraso no início do ano. E, bom, eu, como um bom brasileiro, me endividei bastante em dezembro e agora nesse início de ano eu estava sem saída para pagar minhas contas. Perguntei para mim mesmo: “o que eu sou bom de fazer além de dar aula”? — Ah, eu sei fazer poesia... E aí eu tive a ideia do lançamento de um livreto, como uma esperança que eu conseguia desenrolar uma grana e conseguir pagar minhas contas.
Mas aí o que aconteceu foi que o processo foi bem estressante. Porque lutei aprendendo a diagramar um livro de poesia, como fazer uma capa bonitinha ali para um livreto dentro do [aplicativo de design] Canva, foi a maior correria.
A parte mais fácil foram as poesias, porque elas já estavam escritas. Eu só fiz selecionar e organizar também a ordem delas para formar uma ordem que atendesse às demandas que eu exigia quanto o conceito da obra.
A parte mais difícil foi a diagramação que tive que aprender. Mas a parte da impressão também bate muito a cabeça até aprender a forma certa de imprimir, de grampear tudo certinho… é algo que está sendo aperfeiçoado com a prática do tempo que eu estou fazendo esses livros.
E assim, como eu falei, surgiu como uma ideia de fazer uma renda no início do ano para eu conseguir pagar minhas contas. Mas quando eu tinha terminado já no Word de fazer a diagramação, deixar tudo bonitinho, certinho, eu já estava vendo como se fosse um filho que eu estivesse colocando no mundo, tendo muito orgulho de ter produzido isso não só sendo ali uma fonte de renda, acho que isso é o mais importante — não que a renda não seja importante, até porque eu pago minhas contas e isso eu sou grato, obrigado poesia — mas também pelo fato de que essa renda, quando ela se torna uma consequência e não o principal objetivo, acredito que acaba mantendo ali uma veia forte dentro da obra, inclusive deixando ali, realmente, o que o artista quer falar, dar uma liberdade a mais para o artista.
E enquanto uma produção é independente, eu tive bastante dessa liberdade. Eu gostei muito do resultado final, gostei muito da forma como ficou pronto. Primeira vez que lanço poesias minhas escritas e eu não costumava imaginar minhas poesias escritas. Eu sou um poeta que gosta muito de performar minhas poesias. Eu gosto de ter essa performance do Enpretiadu ao subir no palco. Gosto de estar vivendo nesse contato com o meu público, estar interagindo com ele a partir da performance da minha poesia.
E tem muitos jogos de palavras, formas de entonação, formas de falar determinadas rimas, determinadas palavras, frases… Tudo para mim tem que estar junto com uma performance. Então eu não conseguia muito ter essa visão minha dentro da poesia escrita, mas foi o que eu fui desconstruindo com o processo de produção desse livro e também as poesias passaram por algumas alterações para ficarem mais ricas, só que em outra forma de serem abraçadas, recebidas, agora na forma escrita, não junto com a performance e representam um marco muito forte para a minha trajetória.
Eu só tinha ganhado dinheiro com poesia através de apresentações, seja na prefeitura, no estado, através de editais, em festivais, ou em eventos de organizadoras que me pagavam ali, mas precificando um trabalho meu para que o público conseguisse usufruir através de um preço.
Foi algo muito novo para mim. Eu estava receoso de não ter uma aderência mas, felizmente, eu estava errado contra o meu receio. Porque teve uma aderência muito boa, muito forte, até agora eu estou espantado com a aderência que teve,
quantos exemplares eu conseguia vender e quanta gente apoiando a minha obra e também curtindo a minha obra, apoiando pelo fato de curtir a minha obra, achei muito massa! Porque é diferente.
Também tem um contato muito maior com o público pelo fato de ser uma obra independente. É uma obra que eu mesmo vou entregar para as pessoas, através do contato estabelecido a gente marca um dia, uma hora para eu entregar, ou para a pessoa vir buscar comigo. E aí é outra parada, conversar com quem está consumindo a tua poesia, com quem está comprando o que você está vendendo com as suas próprias mãos, estar tendo um vínculo direto com o seu leitor… Muito diferente de deixar um livro numa prateleira de uma livraria e as pessoas irem lá e comprar. Tem um olho no olho, tem o contato com a pessoa que admira o seu trabalho. E isso aí marcou demais a minha carreira, em um nível que eu não esperava e que me deixou de forma muito boa surpresa o quanto de gente apoia a minha obra, a ponto de pagar, mesmo que seja um valor simbólico, um valor pequeno. Pagar é um valor para dar uma força e também ter aquela obra.
Então é um marco novo na minha trajetória enquanto poeta, inclusive para que eu reconheça a possibilidade de lançar mais livretos, livros e, assim, fazer mais produções desse tipo, porque eu sei que tem uma aderência e eu sei que tem muita coisa nova de Enpretiadu que as pessoas querem ver. Então isso daí é algo que me deixa bem feliz até, e ansioso também porque é uma nova fase, é uma fase interessante que é legal de se explorar.
Gosto dessas novas fases dentro da minha carreira. Em determinados momentos, sou surpreendido por essas fases e é muito interessante, porque abriu um novo caminho para ser explorado dentro de algo que eu achava que já estava estabelecido. Mas isso só mostra o quanto que a arte é um devir constante.
E eu espero que os leitores consigam olhar de forma mais crítica, dando um passo para trás, tendendo a desnaturalizar algumas coisas que já estão construídas há um tempo na nossa sociedade, problematizar mais temas que parecem ser normais porque já acontecem há muito tempo e ter uma atitude de espanto frente a essa realidade objetiva que nos cerca.
Então, espero que essa reflexão crítica, acerca da realidade amapaense, principalmente, venha acompanhada também de um sentimento forte de raiva, de desconforto, de esperança também no fundo disso tudo. Mesmo que uma “esperança pessimista”, como eu gosto de brincar, já que sou uma pessoa que pensa que, se as coisas continuarem como estão, daqui para frente é só para trás.
Na verdade, nem tem tanto “daqui para frente”, então a esperança vem exatamente em entender isso e falar “a gente precisa de uma parada nova, uma forma de pensar nova, uma forma de sociedade nova, um sistema novo e diferente desse, porque isso daqui não está legal”. Essa é a “esperança pessimista” que eu falo. E, quanto ao fato dela vir junto com ódio e desconforto, é justamente pelo fato de que esse ódio aos senhores é o que está muito presente em toda a minha obra e que eu espero suscitar sempre que eu declamo, ou quando alguém lê uma poesia minha, porque é um dos meus focos.
O Zezeu - Luzes da cidade é um livro sem editora (artesanal). Você mesmo diz que é uma edição humilde, feita com carinho, mas também movido pelo ódio à burguesia. Como você lida com as dificuldades e limitações de produzir e distribuir a sua obra em um sistema capitalista que mercantiliza a arte e a cultura? Como você concilia o seu trabalho artístico com outras atividades e demandas da sua vida?
Enpretiadu - Cara, eu lido com essas dificuldades através da minha malandragem mesmo, do meu jogo de cintura. Porque, irmão, o tanto de barreira que tem, é complicado, né?
Eu fiz toda minha correria de forma independente. Fui tendo que aprender algumas coisas que eu não manjava, principalmente sobre rede social, divulgação… pra eu conseguir tentar, o máximo possível, fazer com que não desse nada.
E, pra minha sorte, teve até bons resultados. Não reverbera tal como outros artistas que já estão mais consolidados ou que têm condições melhores de estrutura, melhores oportunidades e conseguem fazer reverberar mais o seu trabalho. Mas, consegui, no meio disso tudo, divulgar melhor.
A produção ficou por mim mesmo. Mas, cara, no meio desse processo todo, eu fiquei refletindo bastante acerca disso — na arte enquanto trabalho. Porque, muitas vezes, a arte é vista como um hobby, né? Como algo que tá pra além do trabalho, sendo que a arte é um trabalho como qualquer outro. E a única diferença, talvez, é que a gente ainda tem uma liberdade da nossa criação, nossa produção.Entretanto, é uma liberdade um tanto mascarada. Muitas vezes porque posso escrever o que eu quero — inclusive, é condição pra eu fazer o meu trampo. Eu só vou escrever poesia enquanto eu puder falar o que eu quero. Um dia que eu não puder mais, acabou poesia pra mim. Eu gosto de falar mesmo dos problemas que estão acontecendo, falar dos problemas na minha quebrada, falar dos problemas no meu estado. Quero discutir política com a minha poesia, quero falar sobre como essa sociedade tá erguida sobre uma violência que aflige até hoje toda a população aqui do Amapá e do Brasil, principalmente na região periférica, os povos do campo, população negra, enfim. Eu quero apontar os culpados disso; as consequências disso e também os motivos disso. E apontar as chaves de saída.
Entretanto, convém perguntar: Eu vou conseguir um financiamento diretamente do sistema, o qual eu critico e tô querendo acabar por meio de arte? Fica um trabalho fácil de vender ideia pra uma editora grande me lançar? Por isso que eu falo que é uma falsa liberdade, sabe? A gente tem um formado pra que o que seja veiculado seja uma arte que convém pra manutenção desse mesmo sistema. É uma arte que ela, tanto por meio das letras que cultuam o estilo de vida que é idealizado dentro desse sistema ou como as obras de arte que tem ali, ou as obras de arte lá que são totalmente alheias a questões desse sistema, como se fosse uma realidade outra. E uma arte como a minha encontra dificuldade de se inserir nesse mainstream. Inclusive, o mainstream existe justamente pra marginalizar essas outras formas de arte, que são mais disruptivas, são mais revolucionárias, tocam mais o dedo na ferida. Então a gente vê que esse fomento da indústria cultural pra começar, pra promover essa arte que atende à uma lógica de mercado, cria barreiras pra gente que quer falar a verdade. A gente ainda tá refém das views; a gente ainda tá refém da produtividade que a gente tem que ter nas nossas redes sociais; tem que apresentar o tempo todo alguma coisa; tem que estar sempre postando algo pra poder continuar sendo visto. Porque parece que, se não fizer isso, flopa, né? E aí a gente vive nessa era “posto, logo existo”, condicionado a essas amarras.
Tem muita coisa escrita, mas é tudo assim, tipo, de momentos assim que eu parei ali mesmo pra botar pra fora. Como eu até falo numa poesia lá dentro do Luzes da cidade, que é O artista por aí: “Sou eu que grito, Enpretiadu/ Sou eu que sinto, aprisionado, o mano sim, humano/ não, Simão”.
E a única coisa que eu consigo é ensaiar pra me apresentar. Porque a minha criatividade não é só de uma forma, não tem uma metodologia, ela acontece de várias formas, é sempre uma aventura embarcar nisso. Tanto que eu também não gosto de escrever quando eu não quero. Porque eu sinto que sai um negócio sem vida, assim, um negócio chocho, sabe? E aí eu não consigo, não gosto. Eu gosto mesmo é de trabalhar aquilo ali que eu tô sentindo mais no momento.
O Zezeu - Como você se relaciona com o seu público? Como você recebe o feedback e a crítica dos seus leitores? Existe uma rede de apoio e solidariedade entre os poetas marginais?
Enpretiadu - Cara, a forma como eu me relaciono com o meu público é maravilhosa!
Por eu ser um artista marginal e ter mais me apresentado do que vendido o livro, tem gente que quando vai em apresentação minha recita algumas partes das minhas poesias junto comigo. Tem gente que conhece meu repertório. Tem gente que sabe quando eu erro uma parte e faço um improviso pra disfarçar o erro e às vezes sai até um negócio melhor. Tem gente que tá me acompanhando de fato, assim, sabe? E que conversa comigo sobre isso.
Eu gosto de ouvir as opiniões, eu gosto de ouvir os feedbacks. Porque eu gosto de fazer essa autoanálise sempre, pra ir lapidando; conseguir enriquecer cada vez mais.
E isso daí não se aplica somente nas que eu já tenho escrito e que ouvi o feedback. Mas também eu incorporo como um conhecimento pra que eu consiga usar em outras produções, em outras poesias, que até leva pra vida, quem sabe?
Mas eu gosto muito das críticas que eu recebo, eu gosto muito do meu público, eu sou muito próximo.
Ser artista independente tem essa vantagem de poder ter o contato e tal.
Eu ainda me assusto às vezes quando eu tô passando pela rua, eu tô num rolê em algum lugar e alguém vem me cumprimentar falando que gosta muito do meu trabalho. Eu fico assustado às vezes, penso que até alguma coisa perigosa vai acontecer. Aí quando eu vejo, é só alguém querendo cumprimentar e tá falando que curte meu trabalho. Já vi gente querendo tirar foto, eu me senti simplesmente famoso, né? Me achei! Mas, brincadeira à parte, eu gosto muito desse contato, porque é algo que eu faço de forma orgânica e tem esse reconhecimento mesmo não sendo esse mainstream todo. Mas é o que faz com que pessoas se identifiquem, faz com que pessoas sintam representadas e consigam sentir alguma coisa com que eu tô falando.
Eu amo falar sobre meu trabalho, eu amo mesmo porque meu trabalho é cheio de referências. Eu faço várias brincadeiras com as palavras, às vezes eu uso umas metáforas muito loucas, às vezes eu faço um jogo de palavras, umas multisilábicas, enfim, e pouca gente percebe ou vão percebendo e vêm comentar comigo, e aí eu falo um pouco sobre, e aí a gente começa a viajar, indo para outros assuntos, partindo disso e enriquecendo até mais ainda a poesia. Eu acho simplesmente maravilhoso isso, porque é um momento que eu enxergo como a materialização do momento em que a minha poesia transcende a mim mesmo. Ela não se torna mais um eu ali, mas se torna um pedaço meu que foi para o mundo e criou independência total de mim.
Teve versos meus que já foram mais enriquecidos assim pelo público do que por mim, e que eu comecei a valorizar até mais, sabe? Enfim, eu gosto muito do papel da crítica nesse sentido.
Quanto essa rede de apoio e solidariedade dos poetas marginais, não existe. Não existe, mas a gente faz amizades no meio, a gente se encontra com pessoas que a gente quer colar, com pessoas que a gente gosta de estar junto, que é do meio, também gosta de conversar sobre o meio, conversar sobre a arte… Então é mais dessa maneira que ocorre. Porque não há uma rede de solidariedade, tipo que os artistas tem um compromisso ali como rede de solidariedade. Mas claro, tem alguns apoios mútuos que ocorrem muitas vezes com algumas pessoas que gostam de fortalecer mesmo o movimento da arte independente.
Mas, dentro da poesia marginal, a gente é tudo parceiro. Todo mundo se conhece, todo mundo tem uma ideia, e as pessoas vão formando esses laços, às vezes quando colam na apresentação de um ou de outro, às vezes quando vão se apresentar juntos em uma oportunidade de um sarau, como era a oportunidade do Sarau do Sul, do Sol e do Sal.
Existe um apoio, mas não uma “rede de apoio”. Existe uma solidariedade, mas não uma “rede de solidariedade”. Acho importante colocar isso porque rede de apoio é outro nível, ter apoio é outra coisa. É a mesma coisa com solidariedade.
Serviço:
Para adquirir o livro Luzes da cidade, entre em contato com o próprio autor via DM, no Instagram @enpretiadu.