É nas entranhas que nossos fluidos se ocultam
Mathias de Alencar
Tudo é rio, livro de estreia da escritora Carla Madeira, é um romance visceral. Afinal, é nas entranhas que nossos fluidos se ocultam, feito rios cuja torrente irrompe se represados, ou precipitados. Suor e sangue, sêmen e lágrimas. Duas metades da mesma condição: a de ser carne. O título nos evoca, desde logo, a verdade anunciada por Heráclito, o filósofo do rio: tudo flui, nada é fixo, a ordem é só um lapso no caos constante. Haveria ordem na sequência dos fluidos? Primeiro o suor, depois o sêmen? É preciso ver sangue para haver lágrima? Ou o contrário? A vida humana, sob a pena de Carla Madeira, não segue uma ordem. É puro caos. Porque, já dizia Nietzsche, o outro filósofo do rio, é preciso a explosão do caos para gerar estrelas.
A estrela de Tudo é rio, cremos, é Lucy. A puta. A dona de si, do seu corpo. Mas a força da carne de Lucy é coadjuvante. Os homens que ela deixa de quatro não servem a ela, mas ao prazer. O seu sexo desce do palco aos poucos, porque ali a estrela é Dalva, a mulher que se lhe impõe como ameaça pelo domínio que exerce sobre Venâncio, único homem a rejeitá-la, mas também por não revidar a língua
afiada que Lucy volta contra Dalva, toda vez, afrontosa. Sem suspeitarmos de início, a força do silêncio de Dalva, da ferida que sangra, que jorra sem dar a ver, submersa, move a prosa de Madeira ao lirismo rascante da vida de quem, cremos, é a vítima, a farsa, a fraca – até a autora nos fazer engolir a seco nosso preconceito, nossa torpeza, o ar medíocre de quem condena sem conhecer as marcas no corpo do outro. E são muitas as marcas.
Nesse ponto, somos levados a crer que a nudez dá a ver as marcas mais claramente. Ledo engano. Lucy, a puta, é por vezes mais superficial que Dalva, a pura. Suspeito haver aqui certo preconceito da própria autora, a pulsar sob as malhas finas de suas frases bem feitas. Lucy é desenhada menos palpável do que os homens lhe conseguem tocar, certa miragem da pura puta. Só que há muitas marcas não exploradas em Lucy: o sêmen que ela persegue jamais esconde totalmente a lágrima que ela retém. Dalva, porém, não retém seu fluxo, ainda que o silencie junto a Venâncio, causa de sua dor depois do prazer. Ou seria antes? Não há ordem fixa aqui. Dor e prazer são as duas margens das águas que somos. O rio de Dalva segue seu curso, cremos, em direção ao caos.
Ledo engano. O caos sempre esteve ali, nos fluxos que Dalva mantinha em silêncio. A direção de suas águas nos revelam, aos poucos, que somos mais do que fluidos. Afinal, de que rio somos feitos? As vidas de Tudo é rio não são feitas só de morte em sangue, como o fluxo da narrativa nos parece sugerir, até nos frustrar ao final. E muita gente que leu o livro parece frustrada com o final, com aquele retorno inexplicável de um morto. Mas as vidas ali também não são feitas só de sêmen, como sugerem as idas e vindas da carne dançante de Lucy, a musa dos que anseiam gozar sem represas nem frustrações. Antes, é no suor de Venâncio, o rude talhador de madeiras, o homem que fez correr dores e prazeres em Dalva, depois em Lucy (ou o contrário?), que está o sentido do rio que Carla Madeira, na ordem de sua narrativa, deságua sobre nós: aquele da força de Dalva, da persistência e confiança no amor que sua carne só precisou sentir uma única vez.
No fim, o único fluido que faz sentido são as lágrimas: as de alegria. O rio de Dalva, sobretudo feito de lágrimas, rebenta todas as margens, ao final, pela redenção que a dor perdoada faz fluir. O perdão, agora sabemos, é a estrela que traz ao caos da vida algum sentido. Somos mais do que os rios que nos levam – é o que Dalva nos ensina, porque os filhos lhe haviam ensinado antes, e depois. Eis o que não podemos deixar de aprender, sob a pena de Carla Maneira. É o que, no fim das contas, faz valer a pena a leitura de Tudo é rio, sobretudo para nos perguntarmos, como fazem os filósofos: quem há de vencer sua própria correnteza?